Tivemos a honra de receber a visita, n’A Casa de Vidro Ponto de Cultura, do ativista internacionalista e comunicador popular Thiago Ávila (seguido por mais de 250.000 pessoas no Instagram) neste Sábado (09 de Novembro de 2024). Oportunidade de imenso aprendizado através do diálogo com um dos mais ressonantes porta-vozes da luta de libertação palestina no Brasil.
Ele esteve em Goiânia a convite do Comitê de Solidariedade ao Povo Palestino e proferiu também de uma palestra no IFG (vídeo em breve) além de ter participado da 6a Ed. do Festival da Cultura Árabe-Palestina, onde realizou a seguinte intervenção (filmada por Gabriella Callegaris para o C.M.I d’A Casa de Vidro):
Confiram aqui (https://youtu.be/axVAwFRPjr4) o vídeo com o papo completo, com aprox. 2 horas de duração, que batemos com Thiago aqui n’A Casa de Vidro, além de sua transcrição; a entrevista foi conduzida pelo jornalista Renato Costa e pelo jornalista/filósofo/professor Eduardo Carli, com apoio técnico do Roni Vegano (quarteto reunido na foto abaixo); em breve, publicaremos alguns recortes da jornada de Ávila em Goiânia nas redes sociais.
TRANSCRIÇÃO
A Casa de Vidro entrevista Thiago Ávila
Áudio na Íntegra.mp3 (breve)
Renato Costa – Olá a todas e todos que acompanham o canal da Casa de Vidro. Hoje temos a honra e o prazer de receber Thiago Ávila, internacionalista, comunicador, socioambientalista, revolucionário e vegano. Um companheiro lá do DF que tem feito uma grande divulgação da questão palestina nos últimos tempos. E aqui nós recebemos já o Said Tenório, tivemos a oportunidade de entrevistar também o Breno Altman. E agora entrevistar o Thiago Ávila é um grande prazer e uma honra aqui para a nossa Goiânia também, que busca romper os laços aqui provincianos e se abrir ao mundo. E a gente vai fazer várias perguntas aqui no sentido da atuação do Thiago como comunicador internacionalista. Muito bem-vindo, Thiago. Queria te dar as boas-vindas à Goiânia. Ontem estivemos no evento no IFG Goiânia, no centro, e hoje aqui na Casa de Vidro, logo mais, aí a gente vai lá na Feira Árabe Palestina, na Praça Estado da Palestina, ali ao lado do Pão de Açúcar. Bem-vindo a Goiânia.
Thiago Ávila – Obrigado, Renato. Obrigado, Edu. Obrigado, irmão Vegano. E todo mundo que está acompanhando aí pela Casa de Vidro. Prazer estar aqui com você, gente.
Renato Costa – Bom, Thiago, eu queria saber aqui, junto com o Eduardo, um pouco da sua trajetória como internacionalista, né? A gente estava falando aqui, você participou da campanha de busca pela paz na colômbia e começou aqui pela américa latina sua trajetória como internacionalista…
Sim, no fim, a minha caminhada militante, quando eu tinha 18 anos foi quando eu comecei a entender esse mundo que a gente vive né? Eu digo entender, na verdade, é um o processo de crise muito grande né perceber que o mundo que eu tinha sido ensinado a viver era uma absoluta mentira, né? Uma sociedade em que a gente era ensinado a naturalizar as desigualdades, a naturalizar a competição cada vez mais acirrada com o irmão do lado ali, por um emprego ou competição no sentido de acúmulo de bens materiais. Tinha 18 anos quando eu percebi que aquilo ali era falso, que aquilo ali, o objetivo daquilo não era me fazer feliz ou fazer alguém se realizar, mas sim perpetuar um sistema de injustiça, né?
E foi nessa frustração que eu me dedicar com o nosso continente. Chegou um momento em que eu assisti um filme naquela época, estava lançando naquela época, já tem 20 anos, estava lançando o Diário de Motocicleta do Walter Salles, que é a história de Che Guevara na caminhada dele pela América Latina e tudo mais. Quando eu estava assistindo aquele filme fiquei pensando assim, caraca, o que me ensinaram a conhecer: os rios dos Estados Unidos, os bairros de Nova York, os rios da Europa, e eu não sei nada sobre os meus irmãos aqui latino-americanos. Por que eu não sou ensinado a história dos meus vizinhos assim, sabe?
E aquilo ali me frustrou tanto que eu falei, não, vou tentar resolver isso de alguma forma, vou viajar, vou conhecer, né? E aí quando eu fui pra lá, preparei ali por alguns meses essa viagem e tal, e quando eu cheguei em janeiro de 2006 na Bolívia, tava no caminho ali, meu objetivo era ir pra Machu Picchu, que era o que eu queria conhecer naquele momento. Eu cheguei na Bolívia, cheguei em La Paz, em janeiro de 2006, e a cidade estava em festa. Eu falei, o que está acontecendo? Aí eu fui perguntar para uma senhora indígena que estava passando, o que está acontecendo aqui? Ela, nós vencemos, nós vencemos. Eu falei, vencemos o quê? Ela falou, nós elegemos o primeiro presidente indígena depois de 500 anos da invasão europeia. E era a posse do Evo Morales, pura coincidência, eu estava lá. E aí eu fui escutar o que aquela pessoa tinha pra falar. E aí quando o Evo falou, ele falou sobre a questão colonial, sobre a questão imperialista, sobre a necessidade de defender a Mãe Terra, de reconhecer os direitos da Mãe Terra, a necessidade de pensar um futuro pra América Latina que não fosse submisso, a necessidade de pensar com outros olhos que não fossem do norte global, e falou duas palavrinhas ali depois isso mudou minha vida: falou que nós temos que construir uma sociedade do viver bem, do bem viver, e aí essa formulação dele, que era uma plataforma política de muitos anos, que vinha desde a guerra da água, da guerra do gás na Bolívia, todo aquele processo que levou à vitória eleitoral que me encantou do jeito que foi com uma martelada na minha cabeça, foi “caraca, existe um mundo de luta de libertação que você não tem a menor ideia… que a maioria da população (no Brasil) não tem a menor ideia que isso acontece assim.
Eu gostaria muito de poder ser útil a isso, poder colaborar com isso, gostaria de fazer isso da minha vida assim: viver para algo mais importante do que competir com o irmão do lado, do que acumular bem material e tal. E aí voltei de lá convencido, finalmente tem um propósito aqui a seguir na vida, tem algum motivo assim pra seguir adiante, e quando eu cheguei e falei “agora preciso então estudar mais, preciso me capacitar mai”s, sinceramente não sabia nada e a verdade é que muito do que eu tinha sido ensinado era pura mentira, construção ideológica: era ensinado que os Estados Unidos era o promotor da democracia no mundo, e nos filmes de herói e todas as outras coisas eu via que o mundo todo era composto por terroristas bárbaros não civilizados e que tinham que entender a verdade, né?
E o jeito estadunidense de se viver, e a ideia da pessoa que se faz por seus próprios meios, na meritocracia e tal. Então eu tive que desaprender um monte de porcaria que eu aprendi a vida inteira e tive que começar a aprender o que de fato acontecia na materialidade da vida mesmo, na cidade, no campo, nas florestas do mundo, né? E esse foi um processo que tomou muito tempo e gerava muitas crises, né?
Eu falava, caraca, não é possível, não é possível que é tão injusto assim, não é possível que é tão absurdo assim. E aí fui começando a entender as estruturas desse sistema capitalista que a gente vive e a sua expressão imperialista no processo de domínio na América Latina, sua tentativa de destruição do projeto emancipatório da América Latina. E isso me envolveu bastante, gradativamente, com os próprios países em luta, com os movimentos de luta também. Eu tive a sorte nesse processo de ter sido muito bem recebido por famílias camponesas na luta da reforma agrária no Brasil.
Então, um moleque lá que mandava mensagem para a galera ali nas comunidades da internet, falava que queria muito conhecer esse assentamento e tal, e buscava alguém que conhecia. Eu sou de Brasília, então o pessoal vinha para a luta da resistência indígena, eu conhecia, e a galera me convidava para ir pras aldeias, eu aceitava na mesma hora, falei, por favor, me leva, porque eu preciso conhecer, sabe? E aí tive a sorte, cara, de ter sido muito bem recebido nesse período, por pessoas nos territórios, de ter participado ali daquele processo de luta e de construção comunitária que encanta e que aponta uma outra forma de viver, muito melhor do que eu era habituado tentando replicar aquele ideal da dita sociedade ocidental moderna, né?. Então foi nos territórios indígenas, nos acampamentos da reforma agrária, nas ocupações urbanas e foi com os nossos irmãos vizinhos latino americanos que eu fui fazendo a minha formação política.
E aí isso me trouxe outra perspectiva, se eu não fui um militante que começou a militar num partido, ou num movimento estudantil, ou num sindicato, eu dou muito valor, e que bom que a gente tem uma porta de entrada importante para a militância, mas eu vim de outro caminho.
E aí eu nunca disputei uma eleição de DCE na vida, mas o meu mentor, na verdade, era um padre colombiano que veio da guerrilha da Colômbia. Então ele me ensinava outras coisas, ensinava outros dilemas e outras ferramentas, outras formas de luta também. E isso me trazia outros paradigmas mesmo. Nos assentamentos, nos acampamentos da reforma agrária por exemplo, infelizmente eu passei por situações de presenciar despejos, por uma semana não estava no massacre da Singenta mas morreu uma pessoa que eu conhecia, com quem eu estava lá, sabe… então é por ensinamento muito duro mesmo que boa parte das pessoas, com quem eu lutava pela paz na colômbia do processo de intercâmbio humanitário, até que chegou chegaram a acordo de paz em 2016, mas anos antes a boa parte da equipe que negociava isso foi assassinada, eram as pessoas com quem eu lidava, foram bombardeadas na fronteira do Equador, em sucúmbios, e era para eu estar lá, inclusive, naquela época, não foi porque minha mãe adoeceu e eu não pude deixar ela.
Então foram processos de aprendizado muito duros, não foi uma militância nada habitual, do que a gente está mais acostumado a ver de uma formação militante. E isso sempre me trouxe muito essa questão da disciplina militante, do senso de urgência, da dedicação militante, assim, no sentido integral de vida, isso foi algo que me trouxe nesse caminho, assim, mas sem dúvida nenhuma a América Latina sempre foi um horizonte fundamental, porque até porque coincidiu de quando eu tava começando a militar, a América Latina tava vivendo um momento muito especial, em que a gente via governos de esquerda majoritariamente, né, dá pra ser um pouco mais amplo no sentido de progressistas, tentando ali contrapor um projeto de dominação imperialista a partir da Alca, a área de livre comércio das Américas que os Estados Unidos tentavam impor.
Enquanto isso a gente via Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador tentando construir uma alternativa bolivariana para as Américas e outros países com processos menos radicalizados, mas também uma integração ali um pouco a partir do mercado, mas ainda importante, como o Unasul, o Mercosul, o Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai, tantos outros ali, praticamente todos os países da América Latina naquele momento ou tinham um governo progressista, diretamente vinculado à esquerda, ou tinham um movimento tentando fazer um processo de construção de hegemonia ali. A exceção sempre era a Colômbia, de que a Colômbia sempre era o posto avançado dos Estados Unidos aqui na região. Mas praticamente todos os demais tinham naquele momento um processo de luta muito intenso, às vezes tinham até conquistado a tomada ali do governo, não do poder necessariamente, que estava tentando implementar mudanças, então foi uma militância muito marcada pela construção latino-americana.
Eu tive a sorte em 2009 também de ir para Cuba nas Brigadas de Solidariedade, logo depois de dois furacões, e aquilo ali também mudou muito a minha compreensão da força dos povos, até das dificuldades e dos problemas que tem você tentar construir um processo de emancipação sendo vizinho, sendo do mesmo continente que é a maior potência imperial do nosso tempo, os desafios e limites que isso tem. Então, foi um processo que, de fato, na América Latina, e infelizmente o Brasil é parte da América Latina, é importante que a gente não esqueça disso, foi na América Latina que eu aprendi a maior parte do que eu sei até hoje. Felizmente, com o passar dos anos, também fui aprendendo mais com os povos do sul global no geral, o palestino também, exerceu um papel muito importante na minha formação, e gradativamente compreendendo a situação no sentido internacionalista, a ponto que muito da formação formal militante, na teórica do marxismo revolucionário, a maior parte vinha da Europa, mas que a gente vinha fazendo essa síntese com toda a construção do sul global.
Então, isso foi um processo curioso e interessante de se viver. Não é um caminho de entrada na militância que eu recomendo para ninguém, sinceramente. Porque é extremamente difícil e são outros paradigmas. É melhor a pessoa ser aproximada por qualquer tipo de atuação que faça e vai chegando uma organização política estruturada, onde tem camaradas que vão acolher, que vão tocar processos formativos, que vão ensinar trabalho de base, que vão levar junto para os territórios, que vão levar para construções que já existem, eu não tive essa sorte, na maioria das vezes, mas tentei ser útil do que eu fiz até então, nesses 20 anos de trabalho de formiguinha.
Eduardo Carli – Bom, Thiago, super inspirador te ouvir, eu acho que há alguns anos, não só eu, mas muitos comunicadores do Brasil acompanham com muito interesse o seu trabalho, enquanto comunicador popular, enquanto influenciador digital, então quero começar agradecendo a sua disponibilidade para estar aqui na Casa de Vidro trocando essa ideia conosco. E você falava um pouco dessa questão do bem viver, que você explora muito, mas que tem uma inspiração andina, ou seja, tem uma perspectiva que eu chamaria Pachamâmica, e aí eu queria que você explorasse um pouco a sua preocupação com as questões socioambientais e geopolíticas, através desse viés sul-americano, e como que você conecta essa luta anti-imperialista com a luta anti-sionista, que você também se engajou de maneira admirável nos últimos tempos, não apenas através de palavras, de discursos ou de vídeos na internet, mas também colocando seu corpo em risco, em aventuras como a Flotilha da Liberdade. Então, para muitos de nós, da militância, parece óbvio que a luta antisionista é uma luta anti-imperialista. Mas como que você explica, com esse seu talento de comunicador, para um público amplo, esse link que existe entre a luta que a gente empreende contra Israel, compreendido como uma entidade imperial, genocida, violenta, e as lutas antiimperialistas do sul global, em especial aqui no nosso continente.
Thiago Ávila – Isso é muito legal Edu, o que você traz, porque no fim das contas, quando comecei a minha formação política, eu tentava entender qual que era o problema dessa sociedade, como ela funciona, quais são os problemas maiores, como é que a gente resolve esse negócio que está acontecendo. E eu não consegui entender ainda por muitos anos eu ficava sem conseguir entender quais eram os problemas. Será que o problema era a corrupção? Que eu sempre ouvia falar aqui no Brasil, né? Quando eu era criança, adolescente, eu ouvia que o problema era a corrupção, só de Brasília, né gente? Então isso sempre foi algo ali do nosso horizonte, assim. Então eu cresci ouvindo isso. O problema era a corrupção, o problema era as pessoas que não se dedicavam o suficiente, e no fim das contas, se a gente resolvesse isso, a sociedade seria melhor.
E à medida que eu fui entendendo o funcionamento do sistema capitalista, eu fui entendendo que não. E demorei anos para entender que numa multiplicidade de lutas e de batalhas e de problemas sociais que a gente vive, no fim, todos derivavam das três principais raízes ali, que são as três raízes dos males da sociedade, que é a exploração das pessoas, as opressões de gênero, de raça, de sexualidade, de nacionalidade e a destruição da natureza, colocando no espectro da natureza tanto os humanos como os animais não humanos também. Então, não tem nenhuma luta que eu conheça que não tenha como origem fundamental algum desses três grandes males.
E todos esses três grandes males são impulsionados justamente pelo sistema que a gente vive, o sistema capitalista. Que ele se arvora na exploração das pessoas e que ele também… São dois eixos, a exploração das pessoas e a espoliação da natureza. Só que nesse processo de exploração das pessoas, ele se arvora em construções sociais, inclusive anteriores ao capitalismo, como o machismo, como o racismo, o colonialismo, essa dinâmica, para justamente intensificar essa exploração. Então, no fim das contas, eu fui entendendo assim que nós precisamos acabar com todos os grandes males que estavam colocados ali, mas no fim das contas, se a gente lutasse essas três batalhas, a gente estaria lutando todas as causas que eu conhecia, simultaneamente. E aí, quando alguém me apresentava uma luta, pô, vamos lutar pela democratização dos meios de comunicação e tal, eu ia, vamos! E aí eu tentava entender de onde que vinha aquilo e como isso estava inserido nesse contexto de que justamente a comunicação enquanto aparelhos ideológicos ali para reproduzir a exploração das pessoas, para reproduzir também sociedades patriarcais, sociedades colonialistas, sociedades racistas e cada vez mais também negar inclusive o desastre ambiental planetário, por exemplo. Fabricar consenso, manufaturar consenso sobre uma sociedade que a gente vive.
Então, pô, estava muito bem expressa ali. Vamos lutar contra a destruição que o agronegócio promove na sociedade, está muito evidente a exploração dos trabalhadores, todas as opressões que estão envolvidas ali, inclusive contra os povos originários, todo o racismo, uma sociedade escravocrata, uma sociedade que cada vez mais concentra tanta renda injustiça no campo, nas mãos de pouquíssimas pessoas e grupos econômicos e a destruição da natureza é mais evidente ainda porque o agronegócio, além de ser uma bomba de carbono, não é pop, não é tech, é na verdade ecologicamente destrutivo, economicamente terrível para a sociedade, terrivelmente socialmente injusto também.
Então todas as lutas que as pessoas me convidavam para fazer parte, que eu gradativamente ia me somando a elas, eu estava em colocar a elas como eu via elas dentro desse espectro maior, da totalidade da sociedade. E a causa palestina foi uma que veio nesse sentido de que eu me dei conta da causa palestina quando eu vi em 2005 eu vi no noticiário do almoço da Globo as pessoas sendo retiradas, colonos sionistas sendo retirados de Gaza pelo exército sionista em 2005, e eu vi aquilo estranhei muito, mas sempre ouvi que era o contrário, sempre ouvi que esse povo aí que estava roubando a terra dos palestinos, como assim eles estão sendo expulsos agora, o que está acontecendo né? E aquilo ali é um raro momento na história, em que o regime sionista estava fazendo um ajuste ali. O governo de Ariel Sharon estava querendo evacuar as colônias sionistas de dentro de Gaza, tanto numa ideia de usar isso para fazer uma maquiagem e diminuir a pressão internacional, mas principalmente num plano depois muito pior, que era cercar Gaza e transformar Gaza na maior prisão sem teto do mundo, maior campo de concentração e de extermínio do mundo.
Eu não entendia nada daquilo, eu só estava estranhando que as pessoas que eu sempre via como invasoras e colonizadoras estavam sendo tiradas dali. Eu falei, preciso estudar mais isso. Aí comecei a estudar e quando eu comecei a estudar, falei, não acredito. O povo palestino passa por isso, não acredito. São mais de 60 anos naquela época, quase 60 anos de colonização, de genocídio, de limpeza étnica. Não é possível que isso aconteça no mundo de hoje. Eu achava que era uma coisa muito… Falar do passado, falar sobre essas coisas.
Falei, não, quero conhecer mais, quero ser útil nisso. E aí, poucos meses depois que eu comecei a estudar mais e me encantar até com a resistência do povo palestino, a força extraordinária que o povo palestino tem, acontece um processo de intensificação do massacre palestino, do massacre israelense contra o povo palestino, que foi em 2006, onde acontece um processo de incursões militares que nunca pararam, mesmo depois que eles evacuaram as colônias de Gaza, os sionistas continuavam fazendo incursões militares ali, numa dessas incursões a resistência palestina capturou um desses soldados, se chamava Gilad Shalit, e quando ele capturou esse soldado, eles contaram para o mundo todo, falando olha, eles têm que parar as incursões militares aqui, porque esse é território palestino, segundo o direito internacional, a gente tem que ser garantido o direito à nossa soberania e não viver sob colonização.
E eu vi aquele processo dia após dia, quando o regime sionista ia falando que sequestrou um cidadão israelense e nós precisamos salvar o nosso cidadão, sendo que era um soldado fazendo uma incursão militar no território do país que não é deles. Então eu via aquele processo quando eles aumentam a escalada dos bombardeios, quando eles finalizam o cerco total a Gaza, quando eles destroem Gaza praticamente toda também naquela época e invadem o Líbano. E nesse processo de invadir o Líbano todo o custo com ataque a civis, ataque a hospitais, ataque a ONU, nada das coisas que acontecem hoje são novidade, o que muda hoje é a escala, a escala hoje é maior do que nunca, mas em 2006 aconteceu também, aconteceu o uso de fósforo branco, aconteceu o ataque a jornalistas, então todas essas coisas que vinham acontecendo ali me trouxe uma frustração, uma raiva, um ódio que eu não conseguia sequer canalizar aquilo, eu lembro que no desespero de fazer alguma coisa eu fiz uma camiseta. Eu editei uma camiseta que era a cara do George Bush, era a cara do Erhul Omer, que era o primeiro-ministro de Israel, e era a cara do Hitler.
E era “qual é a diferença”? Eu saia andando pela cidade, assim, para conversar com as pessoas, sabe? Pedagogia zero, na verdade. Não sabia nem conversar com as pessoas, porque a minha formação política não era de um espaço amplo de debate, dentro da universidade e tal, então não tinha nem prática de debater muito com as pessoas, eu lia muito, até falava muito, mas não ouvia muito das pessoas falando comigo, sabe? Então, coisas curiosas de um determinado tipo de formação militante não convencional. E aí, dentro desse processo, eu fui conhecendo um pouco mais das organizações de luta palestina, da resistência palestina e tal, e aí eu conheci, em 2010, um grupo que estava indo fazer uma missão humanitária para Gaza para denunciar o bloqueio de Gaza pelo mar. E eles iam fazer uma missão de barco, tentar levar a gente para o lugar humanitário. Eu falei, que bonita, eu gostaria de fazer parte. E aí eu mandei mensagem lá e falei, gente eu gostaria muito de fazer parte dessa parada aí. E me aceitaram, mas tinha que pagar a própria passagem. Eu não tinha ainda, era um jovem, não tinha condições.
A história da minha família, uma família de classe média, mas que gerou uma dívida médica a partir do adoecimento da minha mãe muito grande, né, que não teve uma vida fácil nesse sentido. Então eu não tinha a menor possibilidade de pagar a passagem, eu falei, cara, vou pedir pras pessoas, vou fazer vaquinha, vou atrás do sindicato, das organizações, dos movimentos, partidos, de algum jeito eu preciso ir nessa missão. Mas aí minha mãe, que tava numa situação de saúde já debilitada desde 2006, ela piorou e foi pra UTI. E aí quando ela foi pra UTI, eu falei, não é pra eu ir, é pra eu ficar em casa mesmo e não fui. E esse grupo foi atacado. Essa missão que estava indo para Gaza em 2010, ela foi atacada pelas tropas de Israel, que atacou com helicóptero, atirando nas pessoas e mataram 10 pessoas que estavam lá.
E aí, esse episódio ficou marcado como a flotilha da liberdade que teve o assassinato dos participantes. E desde 2008 as flotilhas iam para lá, mas eu não sabia, não tinha nenhum contato com isso. E em 2010 teve essa situação de irem vários barcos, e um desses barcos foi onde foram assassinados 10 pessoas, e todos os anos seguintes a flotilha ainda continuava indo, tentando romper o cerco ilegal de Israel e demonstrar que, na verdade, não se tratava da única democracia do Oriente Médio, tentando viver em paz, só que vizinhos árabes de uma religião islâmica violenta não deixam. Na verdade era colonização, apartheid, genocídio, limpeza étnica que os israelenses promoviam em nome de uma ideologia sionista, que é uma ideologia de dominação, um projeto colonial europeu. Então no fim das contas aquilo ali eu fui aprendendo com o tempo assim, o que essas coisas representavam, como elas funcionavam, o efeito que ela tinha na vida das pessoas e a força imensa que eles tinham dentro dos aparelhos de comunicação, dos veículos de comunicação, assim, pra maquiar a verdade, né, porque eu tinha que buscar na imprensa alternativa, diretamente com as organizações e tudo.
Não era tão disseminado assim, de todo mundo ter o celular e filmar a parada e publicar rapidão e tal, isso não existia. Então a gente levava, às vezes, uma semana pra saber de um massacre que aconteceu, assim, era muito diferente a dinâmica, né. Aí eu entendi que a causa palestina estava conectada com todas as demais causas quando eu entendia a aliança dos Estados Unidos sendo sócio desse processo de genocídio, fornecendo as armas, fornecendo a blindagem diplomática, fornecendo a blindagem no sentido político, também pressionando os países para que não impusessem sanções e boicotes a Israel, eu fui entendendo que se os problemas que a gente estava vendo lá na aldeia, do agronegócio assassinando as lideranças e destruindo a aldeia, era o mesmo problema que a gente estava vendo nas famílias camponesas, do agronegócio assassinando também.
Era o mesmo problema que na quebrada a gente não era o agronegócio, mas era o grande especulador imobiliário, que queria a cidade como objeto de lucro, e usava a polícia também para assassinar a juventude negra ali, até para esmagar a nossa resistência ali no sentido da luta por moradia e as demais lutas. E era o mesmo problema que a gente via na luta ecológica também, das grandes corporações que também controlam o Estado, que também controlam a polícia, que também controlam o judiciário, para manter o seu processo de destruição. E que esses mesmos problemas estavam conectados com a mesma origem, um sistema que a gente vive que é dirigido não pela burguesia brasileira, mas por uma burguesia internacional liderada pelos Estados Unidos. Eu falei, caraca, então tá, entendi qual que é o grande inimigo, assim, né? E demorei até a entender que o inimigo não era os Estados Unidos em abstrato, mas era uma classe dirigente nos Estados Unidos. Inclusive, fui aprendendo ao longo dos anos que o povo estadunidense, na verdade, é um povo que luta desde sempre, desde a luta contra o genocídio indígena naquela região. E que, na verdade, foi um processo de destruição dos movimentos revolucionários de lá, dos partidos revolucionários, das organizações de massa, dos sindicatos e tudo, mas que é um povo que luta também para se livrar daquela exploração, daquela situação terrível. Então, no fim das contas, eu entendi que nós…
Eu me entendi enquanto essa pessoa que queria acabar com a exploração, com as opressões, com a destruição do planeta, para botar no lugar dessa sociedade uma sociedade onde a gente conseguisse construir justiça social, onde a gente conseguisse construir outros valores, onde a gente conseguisse construir uma sociedade do bem viver. E aí o bem viver vem nesse contexto, né, Dud? Quando o Evo Morales falou isso e eu ouvi pela primeira vez, eu falei, pô, preciso entender o que é isso, porque poderia ser bem o nome de uma farmácia, bem viver. Aqui em Goiânia, se não me engano, tem até um prédio, um prédio, assim, tipo um condomínio, chamado bem viver, sei lá. Eu já vi umas coisas assim, desse tipo. Então eu falei, pô, tem que entender o que é isso, né? Porque era igual a forma vazia que eu ouvia falar de democracia.
Democracia, pra mim, é o povo mandar o governo obedecer, né? O poder popular. Mas democracia, pra quem tá nos Estados Unidos, pode ser você replicar aquele meio de vida em que o poder econômico capturou qualquer ideia de vontade popular ali, né?
Direitos humanos também, né? São expressões e conceitos que são usados por quem quer, do jeito que quer. Eu falei, bom, tem que entender sobre o bem viver. E aí eu fui compreendendo que esse processo da construção do bem viver tem essa origem, como você falou, dos povos originários, andinos aqui do nosso continente, e que pensa, quando eu pegava a própria etimologia da palavra, da expressão, do nome, era o bem viver, por exemplo, para o povo Quechua, era o sumak kawsay. E o sumak era a totalidade e o kawsay é a vida, a vida em plenitude. Como é que a gente consegue viver uma vida plena, uma vida bonita. O suma kamanha para o povo Aymara também, na Bolívia, era essa mesma ideia.
Da totalidade e da vida em abundância. E aí eu fui entendendo que os povos originais daqui do Brasil, alguns com quem eu já me relacionava, também tinham suas expressões. O povo Guarani tinha o pecoporã, que é a sociedade boa e bela, que é obtida a partir do modo de vida em comunidade, que eles chamam de Anderê Corp.
Então, eu fui entendendo que os povos originários tinham uma saída muito melhor do que a sociedade dita ocidental moderna para a forma de viver. Que o bem viver, nesse sentido da construção dos bons conviveres na nossa sociedade, para construir uma sociedade que não explora, oprime, que viva em harmonia com a natureza enquanto parte da natureza, de fato era a sociedade que mais valia a pena se construir. Quando eu fazia a leitura do Marxismo evolucionário, eu via que a sociedade sem classe que a gente queria construir já era aplicada por muitos povos originários, inclusive. E que ali tinha uma vida muito mais harmoniosa, muito mais bela e muito mais realizada do que eu tinha visto, inclusive, até nas outras experiências de tentativa de construção de uma emancipação humana. Então, eu via experiências socialistas que tinham muito a apresentar para a sociedade, que bom, né, que nós temos essas experiências, mas que em determinados momentos faltava essa ideia da construção comunitária, da busca pela abundância e pela felicidade. Tamanhos são os inimigos que a história da emancipação e a história das revoluções sempre teve que enfrentar, de sistemas que tentam destruir aquelas experiências a todo custo. Então, eu entendi que para a gente fazer a revolução, a gente tinha que juntar as pessoas na cidade, no campo e na floresta, numa perspectiva local, mas também internacionalista, porque o que está acontecendo na Palestina está diretamente conectado com o que está acontecendo aqui, e o futuro de lá, muito provavelmente, vai ser o futuro daqui, dos povos daqui. Mas a gente tinha que fazer essa construção para, de fato, conseguir em algum momento construir uma revolução social.
E que essa revolução social teria que ter como horizonte a busca por uma construção de uma sociedade mais justa, mais bela, mais igualitária, e que quem tinha mais a nos ensinar sobre isso era a história das revoluções de um lado, sobre como fazer essa revolução, e os povos originais do outro, sobre como viver numa comunidade que aplica esses valores no seu cotidiano. Foi um pouco dessa caminhada para entender o bem viver enquanto horizonte a ser construído, enquanto estratégia. E eu fui entendendo que, inclusive, no processo de onda progressista latino-americana, isso foi inclusive para a constituição de dois países, da Bolívia e do Equador. Quando o Rafael Corrêa vence com a Revolução do Cidadão, logo em seguida começa o processo constituinte, que bota o bem viver na constituição. A Alberta Acosta coordenou os trabalhos daquela constituinte, e colocou o bem viver como o objetivo a ser alcançado pela sociedade, também trouxe a ideia dos direitos da natureza, da natureza enquanto sujeita de direitos, de que, como os povos krenak sempre trataram, o Atu, aquele rio, mas que também é tratado como um familiar para aquele povo. Quando o Rio Doce foi destruído pela Vale, matou um familiar do povo krenak, de onde vinha a sobrevivência deles e de tantos outros povos. De regência, de Mariana até Regência. Então, a gente está falando de algo que traz os direitos da natureza, natureza enquanto sujeito de direitos, como uma forma de enfrentar o sistema que trata a natureza enquanto objeto de lucro.
E um terceiro aspecto, além do bem viver como horizonte de sociedade, a ser alcançado os direitos da natureza, era a ideia de um Estado plurinacional. Aquilo ali também me encantou na experiência de construção do bem viver na América Latina, que era a ideia de que no mesmo país você pode ter vários povos e nações. E eu tentava racionalizar isso, de que no Brasil nós temos 305 povos originários, que falam 274 línguas diferentes. Por que as pessoas tentam dizer que o sujeito digno de direitos é um homem branco, heterossexual, cisgênero e tal, que parece muito mais com um europeu do que a maioria do nosso povo? A maioria do nosso povo sequer é homem, e a maioria do nosso povo não é branca. Então eu pensava, por que a materialização de sujeito universal aqui é pautada por o que não é uma maioria do nosso país?
Então, era um processo muito bonito, de me dar de cara com um processo muito avançado de construções sociais que apontavam um outro horizonte mesmo. E na Bolívia é a mesma coisa, o bem viver enquanto objetivo a ser alcançado, os direitos da natureza e os estados plurinacionais. E no Brasil a gente nunca conseguiu chegar sequer perto disso.
O Brasil com uma matriz, uma dinâmica primária exportadora ainda, que tem no agronegócio, na mega mineração, uma dinâmica que parece uma coisa antiga, quando a gente fala da história, todo mundo sabia que o Brasil ficar mandando pau ao Brasil para a Europa não ia levar o Brasil a uma situação melhor. Ou que mandar o ouro, ou o cacau, ou a borracha, ou todas as outras coisas dos ciclos, da cana e todos os demais, aquilo ali não ia trazer muito benefício para a nossa sociedade, era muito mais um processo de exploração colonial.
Mas hoje as pessoas parecem que esqueceram disso e acreditam que está tudo bem, o mundo na divisão internacional do trabalho considerar o Brasil um grande fazendão, uma grande mina a céu aberto, um grande poço de petróleo. Para o mundo a gente é isso, vamos ser francos, para o mundo é isso, esse é o papel que o Brasil cumpre na divisão internacional do trabalho. E também é um papel de cassino para a especulação financeira também, que é um lugar realmente tratado como muito especial para os especuladores financeiros. Então, no fim das contas, isso daqui não levava a gente a lugar nenhum. Então eu pensava, caraca, nós estamos no Brasil e nós estamos longe de um projeto de nação que vai levar a gente para a emancipação.
Então, o que a gente pode fazer? E ao mesmo tempo eu via o centro de urgência do desastre ambiental planetária, eu via o imperialismo destruindo cada vez mais países, invadindo países, tocando processos terríveis e inaceitáveis como o do povo palestino. E aí eu falava, cara, nós estamos num momento difícil, temos que lutar com todas as nossas armas e nossas possibilidades, mas eu acredito que nós estamos num momento bem decisivo da história. Naquele momento eu já pensava isso e hoje em dia, então, quando a gente vê o desastre ambiental planetário cada vez mais evidente, quando a gente vê o imperialismo cada vez mais agressivo no sentido de perda de hegemonia, eu sei muito bem, Edu e Renato, que esses momentos que nós estamos vivendo aqui hoje vão ser conversados por todas as próximas gerações, como momentos decisivos na história da humanidade e aí por isso que vem essa pressa e essa vontade de me dedicar muito com toda a energia que eu tenho, porque nós realmente não temos tempo a perder.
Renato Costa – Tiago, eu queria te perguntar depois de te ouvir falando do internacionalismo da sua posição enquanto cidadão do Distrito Federal enquanto brasiliense, lembrando aquela célebre frase do Tolstói, se queres ser universal, comece por pintar a sua aldeia. E eu me pego pensando muito também, estudando jornalismo internacional e geopolítica, me pego refletindo muito na minha condição de goianiense, e como a gente pode fazer essa integração entre o local e o internacional, universal. Em 2021, você foi preso duas vezes lá na ocupação do CCBB, resistindo ao despejo e à demolição de casas de uma comunidade de catadores de materiais recicláveis, incluindo a demolição de uma escola linha do Cerrado, que vocês construíram em Mutirão. Foi um momento em que circulou muito os vídeos da sua resistência e tal, e você até menciona num vídeo posteriormente, que você tem uma decisão favorável, que o Distrito Federal é um dos lugares mais desiguais do país, e nós aqui em Goiás sempre refletimos muito o que significa ter o centro do poder nacional aqui no nosso território, compartilhando o território conosco e essa proximidade com Brasília, de que maneira a gente pode pensar uma estratégia de emancipação nacional, mas também que passa pela localidade, pelo bioma cerrado, um bioma estratégico para o planeta e como você pensa justamente essas instâncias, ecológica, local, regional, como você pensa Goiás a partir do DF também, o Centro-Oeste, essa fronteira com a Bolívia, que é algo também particular do Centro-Oeste, justamente esse lugar de fronteira, para que a gente possa… Você falou das lutas, das ocupações, e essa ocupação no DF me chamou a atenção porque você estava ali na sua cidade de origem, mas promovendo uma luta que você promove a nível internacional também. O que você pode nos dizer sobre o DF, sua condição de brasiliense, etc?
É interessante, né, Renato? Vocês que estão aqui em Goiânia, vocês sabem mais do que o resto do mundo sobre o que é de verdade o Distrito Federal, né? Porque a verdade é que vendem uma mentira sobre o que é o Distrito Federal para todo mundo. Vendem uma cidade moderna, é uma cidade agregadora, é uma cidade perfeitinha nas suas linhas, uma cidade feita para servidores públicos, onde desde que você tenha um carro você é super feliz e vai viver com arborização. Mas a verdade é que nós estamos falando da terceira maior metrópole do país, o Distrito Federal e sua área metropolitana.
A gente está falando do lugar que disputa sempre com o estado do Alagoas e outros dois estados, sobre qual é o local mais desigual em todo o país,e é o local extremamente segregado socioespacialmente, em que de fato as elites da cidade sequer têm contato com a pobreza, porque é um processo de segregação socioespacial tão cruel, tão terrível, que de fato as pessoas têm a impressão, quando vão a Brasília e só veem o plano piloto, de que não existe pobreza naquele lugar, mas na verdade é o lugar que tem, por exemplo, a maior favela do Brasil. O Sol Nascente passou a Rocinha, a quantidade de habitantes, e fica lá. A diferença é que não é no morro, a diferença é que é tão distante do Palácio Presidencial que as pessoas sequer sabem que existe, que moradores do Distrito Federal sequer sabem que existe.
Então, é um processo ali de uma cidade segregada, extremamente desigual, que é muito cruel. E tocar todas as lutas internacionalistas que eu sempre toquei, vivendo sobre aquela contradição do que é estar na capital do país e tudo que isso representa, foi muito doloroso para mim, porque o Distrito Federal tem uma história de luta interessante, de luta importante também. Ali foi o local de rota de fuga dos indígenas, foi o local que se construiu ao longo dos anos lutas pela reforma agrária, as pessoas pensam que não existe agronegócio no Distrito Federal, mas existe, que não existe um uso intensivo de agrotóxicos por vezes, foi o maior do país em alguns anos e existe, e proporcionalmente, obviamente, ao tamanho da área.
A gente está falando de locais onde as crises sociais são terríveis, onde a gente tem um bairro aqui, e há 15 quilômetros, um bairro aqui que tem o IDH comparado à Suécia ou Dinamarca, e logo ali a gente tem um bairro com o IDH comparado aos cinturões de pobreza do mundo, da América Latina, da África e do Sul da Ásia, que a gente teria em qualquer cidade do país, e tem, mas no Distrito Federal consegue ser pior por conta da questão da desigualdade. A gente está falando de fato de uma cidade que tem o orçamento federal per capita maior, portanto a maior possibilidade de você fazer uma qualidade mínima de vida para toda aquela população. Só que é extremamente concentrado, o orçamento daquela cidade é extremamente concentrado para determinada classe que não é a classe da maioria da nossa população. Então, no Distrito Federal, também ao longo da vida, militante, nesses 20 anos eu tentei tocar as mesmas lutas, contra a exploração, contra as opressões e contra a destruição da natureza.
O principal inimigo no Distrito Federal, que executa e que implementa essas lutas, é a especulação imobiliária mesmo, que tenta expulsar as famílias para transformar cada vez mais essa lógica da cidade privatizada, é quem nega o direito de moradia das pessoas, é quem se articula e elege suas bancadas inteiras, essa lógica que destrói os biomas, que expulsa as comunidades para construir seus condomínios e avançar em algo que não tem nada a ver com direito à moradia, que é muito mais lucro e circulação de capital, porque as casas que são construídas não são para quem está precisando de moradia, é na verdade um processo de encarecer a moradia para todo mundo, inclusive quem no futuro vai ter a sorte de poder ter o objetivo de morar naqueles lugares ali que estão sendo colocados para venda.
Então, como eu aprendi lá no DF, eu estudava o caso, por exemplo, das ocupações aqui, como de sonho real, aqui em Goiânia, que a luta e resistência é muito importante, aquilo ali impulsionava a gente a fazer as lutas por moradia também no DF. Lá no DF a gente aprendia também com o processo de resistência de retomadas indígenas em outros lugares, dali a gente fortalecia a retomada do Santuário dos Pajés, que é uma região ali,que é uma aldeia que foi colocada ali no lugar extremamente desejado a 15 quilômetros do palácio presidencial e que os governos da especulação imobiliária queriam construir o bairro mais caro do Brasil que é o setor noroeste mas tinha uma aldeia com vários povos, com o povo de Funiô, Cariri de Xocó, Tuxá, Guajajara, Tucano e bom, e os povos estavam na disposição de resistir né então seja nas ocupações de moradia onde a gente ocupava e criava até movimento de moradia seja na resistência indígena, em plena capital do Brasil, a gente foi entendendo que era a partir da luta muito concreta que a gente ia conseguir conquistar esses direitos. Muitas famílias, centenas de famílias foram assentadas depois dessas lutas por moradia e desocupações, e depois da luta e da resistência nos territórios indígenas, as pessoas falam muito daquele processo, daquele dia que eu subi no trator e que a gente enfrentou os tratores e a polícia e tudo mais, mas a verdade é que no território indígena a gente fazia aquilo todo dia. Então, parecia que ele filmava a tarde, gente.
Era todo dia a gente na barricada, a gente dormindo em cima das árvores, a gente enfrentando. Eu, sinceramente, nunca apanhei tanto da polícia, nunca fui tantas vezes detido, nunca fui tantas vezes ameaçado como nessas lutas concretas do território. Na luta do território é muito mais violento do que na internet, porque em qualquer outro lugar, do que numa manifestação, simplesmente. No território o bicho pega mesmo. E de fato assim, a gente foi entendendo que a violência aumentava à medida que a gente ia conseguindo mostrar a legitimidade daquela luta. Um pouco do povo palestino passa também. Só que se a gente persistia naquilo, a gente tinha uma chance muito grande de vitória.
E não é à toa que hoje a gente tem as aldeias demarcadas lá no Distrito Federal. A aldeia do Santuário dos Pajés, dos Furniô, a aldeia do povo Karei Xocó, a aldeia dos Tuxá, e ainda tem outros povos, os Guajajara, o Cano, que ainda estão buscando a sua forma de garantia da terra para viver como os povos originários vivem, integrados com a natureza. Mas as três principais aldeias daquele processo a gente já viu a demarcação contra inimigos poderosíssimos, onde os policiais recebiam, os comandantes da polícia militar recebiam proposta de apartamento na cobertura dos prédios se eles expulsassem a gente e as comunidades indígenas ali. Mesmo assim a gente conseguia ainda resistir contra toda a violência, todos os pistoleiros e tudo mais. Era uma luta muito dura. Então eu fui entendendo também naquele período que só a luta que muda a vida, mas também aquele que está muito vivo na América Latina, de que lutar traz vitórias. Se você lutar você consegue vitórias verdadeiramente. É difícil porque muitas vezes a pessoa entra num processo de luta, de ativismo, de militância e ela só vai vendo derrota, derrota, derrota, derrota, derrota, mas é porque depende muito das lutas que a pessoa faz.
Quando a pessoa está no território lutando, é muito difícil você lutar por muitos anos e você não ter vitórias ali conquistadas em algum momento. Então, foi um processo interessante que eu vivi, de que quando eu olho para trás, 20 anos, eu vejo que aquelas lutas lá, que naquela hora que a gente estava lutando, parecia impossível resistir aquele poder, aquela força. Hoje a galera tem a conquista. Hoje as pessoas estão nos seus territórios. Famílias da reforma agrária também, de ocupações, acampamentos que eu participei e tantos outros. As pessoas hoje vivem fruto daquela luta e daquela conquista. Então isso é um processo muito interessante. Mas no Distrito Federal a gente vai vendo que por mais que a gente resolva em relação a algumas centenas de famílias, a maior parte da população ainda vive num regime de exploração terrível.
E aí a gente foi tocando diversas lutas. Ao mesmo tempo que a gente estava naquela luta com as famílias catadoras, a gente estava na luta com os ambulantes, a gente estava na luta com os outros povos indígenas que ainda lutavam por dignidade, a gente estava na luta com camponeses que lutavam pela reforma agrária popular. E essas lutas eram sempre tratadas com muita violência. A polícia do Distrito Federal é uma polícia muito violenta. A gente tem essa caracterização da polícia do estado de Goiás também, da polícia do estado da Bahia também, a do Distrito Federal também é. E isso sempre teve um custo muito alto para os militantes, principalmente militantes de muitos anos, que passam os anos, os comandantes da polícia militar ou são os mesmos ou eram oficiais de baixa patente, agora são os comandantes, mas que a gente já se encontrava há anos ali e eles já tem uma cultura de odiar militância, odiar o movimento social e que é muito dura. Então eles realmente fazem como uma perseguição. Naqueles dias lá eu era atacado todos os dias e duas vezes eu fui preso, mas toda vez era algum tipo de agressão, era algum tipo de tentativa de intimidação, era algum tipo de tentativa de cerceamento de alguma liberdade que qualquer pessoa deve ter no nosso país, que tentavam fazer comigo. E quando não faziam isso comigo, faziam algo muito pior com a própria comunidade catadora dali.
Então, o papel que eu tinha que cumprir ali, junto com a comunidade, era a gente articular um processo de resistência e que o mundo ouvisse aquele grito. Aquela luta era importante também, Renato, porque no fim das contas a gente estava no meio da pandemia. E o governo do Distrito Federal, da especulação imobiliária, junto com o governo Bolsonaro, queria despejar aquela comunidade, porque aquela comunidade estava a um quilômetro e meio do Palácio Bolsonaro, naquele momento. Mas eu já estava lá há 34 anos. Então, quando chega a pandemia e esse projeto elitista de expulsar o povo trabalhador cada vez mais para a periferia, mandar embora e falar que a cidade está limpa, que chama de higienização, que é muito cruel. Quando vem a pandemia, as pessoas com o lockdown no Distrito Federal, as pessoas tinham que ficar em casa. Eles estavam despejando a casa das pessoas e inclusive destruindo a escolinha que foi criada para professores voluntários que manteram aquelas crianças que não tinham acesso remoto à internet para ter aula, para elas não perderem um ano, né? Porque na quebrada, a juventude perder um ano, o impacto é muito maior do que uma pessoa de classe média alta ou uma pessoa de classe alta que perde um ano, assim.
A gente está falando de uma chance muito grande da pessoa que já tem tudo que joga contra ali, ela não tem mais o interesse ali por seguir os estudos, ou as condições de seguir os estudos. Então, a gente viu uma parcela significativa daquela juventude ali, daquela infância, sendo perdida para o tráfico, sendo perdida para outras coisas. Então, lutar por aquela escolinha ali era estratégico. E, ao mesmo tempo, lutar contra os despejos da pandemia também era. E aí, a gente, quando teve o primeiro despejo na pandemia, a gente falou, caraca, que absurdo, vamos tentar impedir. A gente tentou impedir, conseguiu impedir a destruição da escolinha pela primeira vez. a gente se amarrou nas colunas de sustentação da escolinha, mas depois vieram no outro dia de madrugada, logo no amanhecer e destruíram tudo, aí a gente falou não podemos aceitar, no meio da pandemia não dá, e aí em conversa com a comunidade, eu falei olha, eu já vi a gente conquistar vitórias em situações mais difíceis que essa, mas vai ser difícil, vai ser uma luta muito árdua, vai ser muito violento mas é possível. Se vocês querem, se vocês quiserem, a gente vai junto. Eu vou estar com vocês aqui de noite, se necessário. A gente usa as técnicas de resistência não violenta, que, inspiradas nos zapatistas, inspiradas no movimento anarquista da Europa, inspirada no povo palestino, inspirada nos camponeses da luta da reforma agrária, inspirada no povo guarani-caioá e todas as demais formas. A gente faz essa mistura aqui e a gente tem instrumentos para resistir.
E as famílias falam, vamos, porque mesmo que a gente não consiga para a gente tem instrumentos pra resistir. E as famílias falavam, vamos, porque mesmo que a gente não consiga pra gente, o mundo inteiro vai ver que no Brasil e na capital do Brasil estão despejando famílias na pandemia. E aí, dali, a gente lançou uma vaquinha pra reconstruir os barracos e reconstruir uma escolinha, os banheiros ecológicos da comunidade, maiores, agora. E aí, a vaquinha, no primeiro dia, arrecadou 70 mil reais, assim. A gente falou, pô, vamos até tirar do ar, porque a gente já conseguiu o que a gente tinha, o que a gente precisava, não queremos lidar com isso, tá bom, obrigado gente. E aí a gente fez um mutirão, então no meio da pandemia, a gente tinha uma liminar que proibia o governo de despejar famílias na pandemia ali, mas não estava nem aí essa ideia de quem é legalista, de que se a gente conseguir uma canetada do judiciário vai proteger, nunca protegeu a gente. A gente, mesmo com uma liminar, a gente tinha a proteção, mas o governo despejou do mesmo jeito. Então a gente falou, vamos reconstruir. E quando a gente reconstruiu, no primeiro despejo, não tinha nada de mensagem daquelas famílias. As famílias estavam lá, escondidas no cerrado, famílias catadoras e tal. Quando vinha a polícia, elas gritavam e falavam que a polícia era violenta. Nesse novo processo, as novas casas que foram surgindo já eram com aliados de todas as lutas.
Então vinham professores e professores, então vinham camponeses e vinham ambulantes de outras lutas que a gente tocava, e vinham indígenas, e vinha a juventude, e das mais variadas lutas, construir aquilo junto, e ao mesmo tempo aquelas pessoas ouviam a história daquelas 34 famílias, se encantavam com aquela história, e criavam uma disposição em defender aquela terra também. E as casas novas que estavam surgindo, e as placas falando do direito à moradia, algumas ainda vinham no sentido legal, de que, ah, eliminar o Conselho Nacional de Direitos Humanos, e a resolução do Conselho Nacional de Justiça, mostra que isso daqui é ilegal e tal, mas as que me encantavam eram as outras, eram as que estavam na entrada como territórios apatistas. O povo manda, o governo obedece.
Enquanto morar for um privilégio, ocupar vai ser um direito e um dever. Então, aquela comunidade estava ressurgindo sob um outro significado de luta. Não era só mais os setores da classe trabalhadora tentando viver em uma sociedade que não era para ela, era a gente tentando, aliados de várias lutas, tentando construir uma nova sociedade para o nosso povo, para a nossa classe, para nós. Então aquilo ali assustou e trouxe ainda mais raiva do governo. Então logo depois que a gente terminou de construir a nova escolinha, os banheiros ecológicos, os novos barracos, o governo já foi na imprensa e falou vamos destruir tudo de novo. Só que aí o governo, por sorte, por uma caminhada muito dura de vida, a gente sabe que os governos não são confiáveis, né? Os governos que geram esse sistema capitalista não são confiáveis. Então, quando a gente foi construir a nova escolinha, a gente já sabia da necessidade de autodefesa dela. E a gente construiu uma escolinha com capacidade de resistir uma estrutura no teto.
Então, o teto não era mais um teto impossível da gente ficar, porque antes, quando era só a telha de fibra e cimento, se a gente subisse lá, a gente só ia cair no chão e pronto. Agora não, agora é um teto que a gente podia andar em cima, que a gente podia manter uma equipe em cima resistindo. E aí aquilo mudou tudo, porque quando eles vieram, já não eram mais só as 34 famílias e meia dúzia de gato pingado nós aliados, aí já eram centenas de pessoas. Professoras voluntárias que iam lá dar aula para os estudantes, que falariam uma semana antes, que nunca desafiariam uma ordem de uma polícia, elas estavam lá, lado a lado, usando as técnicas de entrelaçamento, de resistência não violenta, que movimentos usaram na história das revoluções de tudo quanto é lugar. E com a maior coragem, tanto quanto os militantes que estavam ali que já militavam há 20 anos.
Era uma coisa linda de se ver, todo mundo lutando junto, desde a família catadora, com aquela professora voluntária, com aquele militante do movimento estudantil que estava na sua primeira ocupação, em primeiro enfrentamento com a polícia ali. E algumas pessoas em cima da escola, uma equipe em cima da escola, era parte dessa equipe, e outra equipe circundando a escola, outra circundando os barracos. Quando a polícia chegou, era impressionante, assim, que eles não imaginavam que eles iam encontrar esse nível de resistência, assim. E eles tentavam tirar as pessoas e as pessoas…
E tanto as pessoas não estavam… não agrediam a polícia, as pessoas estavam fazendo uma resistência não violenta. Elas estavam entrelaçadas a ponto que eles não conseguiam tirar, mas ao mesmo tempo elas não obedeciam o que eles estavam mandando, né, de sair, sair, sair. E quando eles xingavam e quando eles começavam a bater nas primeiras pessoas, as pessoas ainda mantinham o seu lugar ali. Então aquilo ali foi assustando a polícia de um jeito, né, nas primeiras pessoas, as pessoas ainda mantinham o seu lugar ali. Então aquilo ali foi assustando a polícia de um jeito, né, que eles declararam voz de prisão pra mim várias vezes naqueles momentos, né, porque naquele momento eu era a pessoa que tava ensinando aquelas técnicas, boa parte delas, mas as pessoas ali tiveram uma coragem extrema, cara, extrema. E a polícia depois agiu, foi crescendo, usando gradativamente cada vez mais força contra aquelas pessoas, e chegou o momento que eles conseguiram dispersar as pessoas de baixo, mas eles não conseguiam dispersar a gente lá de cima, porque a gente não ia sair, não importa o que aconteça, a gente estava defendendo ali um local, que a gente sabia, em diálogo com as famílias, que quanto mais durasse aquela resistência, mais o mundo ia saber que aquilo estava acontecendo.
Então a nossa tarefa era ficar mais horas naquela resistência para que a gente conseguisse que mais pessoas ficassem sabendo. E no primeiro dia de resistência, quando aquele contingente de mais de 700 policiais caiu uma chuva torrencial e expulsou a polícia então nós vencemos a mãe terra né, Pachamama nos salvou naquele momento ali de uma situação de violência muito grande e no dia seguinte a gente segurou por muitas horas, pelo menos 6 horas de resistência ali contra uma violência da polícia imensa que destruiu a escola com a gente em cima depois, que depois quando caiu todo mundo e prenderam as outras pessoas, eu fiquei sozinho em cima da escola e só tinham duas colunas ali naquele momento. E a escola ia cair, eu já estava calculando ali como seria a queda para não ter uma lesão permanente também dentro desse processo.
E aí não bastasse estar só em duas colunas, eles chamam o trator para derrubar as duas colunas onde estava em cima. Eu falei, meu Deus, então eles querem me matar. E já tinham declarado voz de prisão, eu sofria muitas ameaças naquele período também. Só que quando eles vieram com o trator eu falei bom, qualquer encostada desse trator aqui vai cair eu e essa estrutura e vai saber o que vai acontecer. Então a saída que eu tenho é subir em cima do trator. E aí quando o trator veio eu passei a não encarar o trator como ameaça, eu encarar ele como um presente. Que bom que esse trator também é a minha saída daqui. Então quando o trator veio eu pulei, passei em cima do trator e fiquei em cima do trator.
E aí eles ficaram sem saber o que fazer, tá? O que a gente faz? E aí eles ficaram lá, aí eles com muito mais ameaça, muito mais agressão, expulsaram todo mundo em volta, porque as pessoas voltaram a empolgar com a possibilidade de resistência ali, né, de tomar e impedir o trator de agir e tal. E aí depois subiram policiais da tropa de choque ali, da Polícia do Distrito Federal, subiram, me arrancaram lá de cima, algemaram e me jogaram no chão, assim, em cima do trator. E depois me arrastaram pro meio do cerrado, me ameaçando de morte e tal, e levaram ninguém, ninguém me acessava, advogado, ninguém com câmera, chegavam perto e jogavam bomba e tal. E aí pegaram as pessoas que já tinham prendido antes, que já estavam nas viaturas e falavam, me mostrava a viatura que eles estavam e falavam você não vai pra lá não, você tá achando que você vai pra delegacia? Isso é pelas outras pessoas. A gente avisou você muitas vezes esse dia, esse dia do que ia acontecer com você e tal. E aí outros eram mais explícitos, né, a gente vai te matar e tudo mais. E aí me trocavam de viatura e falavam, não, agora você vai para outro lugar, agora você vai para outro lugar. E não deixavam ninguém me acessar e tal. E quando eles decidiram o que iam fazer comigo, isso virou toda uma repercussão nacional, como você falou, a cobertura, né?
A nossa necessidade de levar aquele grito adiante deu certo. As pessoas falaram dos desfechos da pandemia e aquilo ali me trouxe uma proteção. A ponto que no final me botaram na mesma viatura que as pessoas e levaram a gente para acusar a gente de crime ambiental. Falaram que não era luta por direito à moradia, que na verdade tudo aquilo ali não era uma operação policial, era uma fiscalização ambiental e que eu impedia a fiscalização. Eu só se ambientalista cometendo crime ambiental. E queriam me deixar 4 anos e meio preso por 4 crimes e ainda um processo cível ali. E aí a gente venceu esses processos. Gradativamente ao longo dos anos a gente foi lutando, vencendo, provando a inocência. E hoje eu sou uma pessoa inclusive de ficha limpa, sem registro criminal, estou cheio de planos inclusive.
Porque no fim das contas, nessa sociedade a gente sabe que as pessoas que são criminalizadas lutando por justiça social, elas na verdade deveriam estar sendo premiadas. As pessoas que eu conheço, boa parte das mais dignas pessoas que eu conheço nesse país, elas foram perseguidas e atacadas, doutoradas e assassinadas. Então isso não é demérito nenhum ter sido preso, sinceramente, eu trato como parte da vida militante, eu não romantizo isso, porque eu não gostaria de passar por isso, mas também não tenho medo de passar novamente, eu sei que todas as vezes que isso aconteceu, o efeito que teve foi o contrário do que eles esperavam, só fortaleceu as nossas lutas.
Eduardo Carli – Incríveis essas narrativas de vivências, muito inspiradoras, e eu queria te ouvir mais, talvez um aspecto um pouco mais filosófico, que eu vejo que a sua postura manifesta o que a gente chamaria de uma postura ética de empatia com os despossuídos, os injustiçados, os oprimidos da Terra, os condenados da Terra de que Fanon falava. Eu queria ouvir de você a respeito do desafio de viver assim. Quando você traz a questão do bem viver, isso me soa muito filosófico, parece que remete a uma busca ancestral que nós empreendemos para encontrar uma boa vida que nos leve à mítica felicidade. E, no entanto, parece que você está dizendo que é impossível esse bem viver de maneira individualista e fora de uma luta política coletiva, que envolve também uma grande dificuldade que eu vejo, que é esse poder de uma disposição afetiva, onde você vai escutar o sofrimento do mundo, ao invés de construir um muro que te torne indiferente, entende? Então, um exemplo mais concreto que eu vivi recentemente lá na IFG, enquanto educador, a gente tenta fazer alguns processos que é meio que de chacoalhar o estudante, né? Para que ele saia da apatia, da indiferença, e que ele sinta de fato essa dor da injustiça que está aí multiforme pela terra. E aí a gente exibiu o filme da Abby Martin chamado Gaza Luta por Liberdade, e no momento do cine debate, as lágrimas se manifestando, e uma estudante dizendo, pô, esse filme me emocionou muito, né? Ele me tirou de um estado de indiferença afetiva e ele me comoveu, né? Mas ao mesmo tempo o discurso subsequente de “que bom que isso acontece tão longe daqui, que bom que vivemos no Brasil”, uma espécie de atitude assim: “ufa, que alívio, não é comigo!” Então a minha questão é a respeito desse desafio de nós termos um modo de viver uma postura existencial que é de empatia com todos aqueles que padecem com a fome, com a sede, com a falta de eletricidade, com os mísseis chovendo do céu, com os escombros de suas casas, com a expulsão dos seus territórios e a incapacidade de retornar. Porque me parece que isso é uma postura que exige o compadecer. Tem o padecimento do mundo e você tem que padecer junto. E me parece que muitas pessoas se opõem a isso. Talvez Freud falaria do princípio de prazer. É tão desprazeiroso eu compadecer com esse sofrimento imenso que existe no mundo, né? Então, a minha questão, talvez de maneira mais simples: como que você consegue ter empatia com os trucidados, os condenados da Terra, sem perder o ânimo e sem se render a essa tentação da indiferença afetiva ao que massacra as pessoas, os corpos das pessoas oprimidas pela Terra?
Isso é muito importante, né Edu? Talvez esse seja o tema mais importante para lidar com pessoas que estão, pela primeira vez, compreendendo a sociedade que a gente vive e se dispondo a, de alguma forma, dedicar algum nível de energia para transformar isso. É como dar conta do que está acontecendo. Uma coisa que me permeou a minha vida desde a minha formação militante, eu tenho certeza que passa pela cabeça de todo mundo, é que à medida que você adquire aquele nível de consciência sobre a exploração, as opressões e a destruição da natureza, você nunca mais vê o mundo da mesma forma. José Paulo Neto falava que era uma mosquinha que picou você e aquela picada nunca mais vai sair de você. Depois que você adquiriu aquela capacidade crítica, aquela lente para enxergar o mundo, você não volta mais a ver sobre os aspectos da alienação como era antes, você entende seu local, seu lugar nessa sociedade. E isso causa profundas dores.
Então, a gente é até acostumado numa dinâmica, por exemplo, que patologiza o sofrimento do mundo, inclusive numa lógica que pensa a saúde mental muito a partir do neoliberalismo, de que você tem que estar bem a ponto de você ser força de trabalho explorada, e trabalhar enquanto eles dormem, e estar pleno ali para você dedicar toda a sua energia no seu trabalho no dia seguinte, e que eles têm uma orientação muito simples de que não se responsabilize e não sofra por coisas que não estão sob seu controle.
Lave as mãos sobre o problema do mundo, não esteja nem aí pra isso, senão você só vai sofrer e não vai alcançar nada. Sendo que isso parte de uma premissa que até eles sabem que é falso, porque o objetivo dessa forma de psicologia é que busca que a pessoa tenha condições de reproduzir sua força de trabalho explorada no dia seguinte. É isso. Não é pra pessoa ser realmente feliz. Mas eles utilizam essa mentira que no fim das contas as pessoas, mesmo as que alcançam os tais objetivos dos bens materiais e tudo mais, elas gradativamente vão entendendo que aquela felicidade é muito vazia, ela é baseada em um padrão de consumo que já já o padrão aumenta de consumo e aí você teria que se dedicar a um sacrifício ainda maior ou a atalhos e níveis de exploração e situações que não são dos valores da sociedade que a gente acredita para alcançar aquele nível de vida e que a pessoa de fato não se realiza verdadeiramente. A verdade é que a realização plena de qualquer sujeito na nossa sociedade está condicionada a uma comunidade saudável, a um ambiente saudável, uma relação saudável com a natureza. Não existe felicidade no isolamento. É muito importante que as pessoas que pensam que podem viver em paz tranquilamente, sem nenhum tipo de agonia enquanto está acontecendo um genocídio, é importante que elas compreendam que isso foi um processo ideológico muito grande aplicado nela para que ela interpretasse dessa forma. E que ela tenha sorte de não ser esse povo que está sofrendo genocídio nesse momento, mas que em outro momento da história não vai ser.
Em outro momento, alguém tem dúvida que o Brasil algum dia vai estar na mira militar dos impérios, do imperialismo. Nós temos um sétimo da água potável disponível de forma líquida no mundo, nós temos dois maiores aquíferos do mundo, o aquífero Guarani, 40 km³ de água, o sistema aquífero da Grande Amazônia com mais 160 mil km³ de água, a gente tem a maior floresta tropical do mundo, a gente tem o maior rio do mundo, a gente tem a maior potência socioambiental para energias inovadas do mundo, eu não tenho a menor dúvida de que a gente está na mira do imperialismo, sempre esteve, mas que em algum momento essa disputa vai se acirrar. E nesse momento seria muito triste a gente poder analisar o comportamento do restante do mundo e falar, ninguém se importa com a gente, ninguém está nem aí para o nosso sofrimento.
E as pessoas de lá pensarem, que sorte que eu tenho de não ser brasileiro. Imagina essa situação, cara. Então as pessoas que se colocam nessa situação, elas têm a sorte de não ser o sujeito que está vivendo aquilo naquele momento, é algum nível de privilégio, mas é muito mais sorte de não estar. Mas a felicidade daquela pessoa está condicionada a isso. Ou ela não vai sofrer quando os filhos e netos não tiverem um meio ambiente ecologicamente equilibrado para viver, ou ela não vai sofrer quando, na pior das hipóteses, as pessoas mais egoístas, individualistas, da classe trabalhadora, mais dominadas por essa ideologia dominante, ainda sofrem com a violência urbana, ainda sofrem tendo que se cercar ali nos seus condomínios fechados, nos seus carros ali com cada vez mais proteção para não sofrer com as contradições do mundo, sabe? Então, algum nível de restrição essas pessoas vão tendo.
Então, no fim das contas, eu dei essa volta toda, Edu, para dizer que a nossa felicidade está condicionada. É um processo de felicidade da sociedade como um todo. Eu nunca separei isso, nunca pensei, desde que eu adquiri o mínimo de consciência militante, que eu poderia ser plenamente feliz enquanto a gente não construir essa nossa sociedade nova. O problema é que construir essa sociedade nova dá um trabalhão. Nós estamos muito distantes dela. Então a gente vai mesclando essa insatisfação e esse senso de urgência para construir essa sociedade, os sacrifícios que isso traz. Eu não idealizo a vida militante de jeito nenhum. Depois de tudo que eu passei, depois de perder companheiros de luta, depois de tantas, tantas coisas, gente. Gente eu idealizo que está fazendo aqui eu sei que é importante mas eu eu não romantismo que está fazendo como se fosse um mar de rosas na verdade é muito sacrifício muita luta mas eu sei também que a minha felicidade está condicionada porque embora nós não estejamos vendo ainda a sociedade que a gente precisa viver para ser plenamente feliz saber que a gente está lançando nesse propósito traz algum nível de realização e as relações que a gente vai construindo com as pessoas que estão caminhando junto com você nesse mesmo propósito, elas trazem algum nível também de felicidade nesse momento, de que a luta tá difícil, mas os companheiros estão aqui dividindo esse peso com a gente assim, sabe? Então a gente sabe que ali a gente tem um espaço seguro a gente sabe que ali a gente consegue viver um pouquinho dessa sociedade que a gente vai viver, que é tão linda lá no futuro, a gente já consegue viver aqui com melhores relações, como as relações e as coisas lindas que vocês fazem aqui na casa de vidro. Então, tá bom, o mundo tá cheio de exploração, de opressões, de destruição da natureza, porra, mas aqui a gente tem o melhor tratamento com as pessoas, aqui a gente não reproduz opressões, aqui a gente tem uma busca pela regeneração da vida e da sociedade, do sentimento e dos afetos das pessoas, sabe? Então, é lindo a gente poder construir a sociedade nova que a gente quer construir, ao mesmo tempo é terrível e duro o caminho e a batalha que a gente passa para enfrentar uma sociedade que é tudo o oposto da sociedade que a gente defende. Então, é nessa dicotomia entre enfrentar os maiores horrores, mas sonhar e construir um pouquinho das coisas mais lindas que o militante precisa caminhar. E nisso ele precisa se entender, de manter a raiva digna sobre tudo o que acontece, o senso de urgência sobre o que acontece e ao mesmo tempo o brilho no olhar e o entusiasmo porque o que a gente quer botar no lugar é muito mais bonito e muito mais importante. Então eu sempre trato muito isso, de que o militante é como se fosse uma máquina do tempo. Acho que a gente está no nosso tempo histórico aqui hoje, mas a gente está sempre buscando da história, das revoluções, experiências que mostram que é possível a gente fazer, sabe? A gente está sempre tentando replicar um pouquinho do que a gente quer botar no futuro, com todas as nossas falhas, todas as nossas contradições, nossos problemas, mas nós estamos tentando ser um pouquinho do exemplo da parada que a gente quer construir depois, para mostrar o melhor jeito, o melhor jeito de dizer é fazer. É muito mais fácil a gente mostrar o que é soberania alimentar se a gente está praticando na nossa vida cotidiana a regeneração dos biomas em sistemas agroflorestais, em hortas comunitárias, do que se a gente só ficar falando sobre isso no sentido da consciência teórica. Então, nesse processo de navegar um mundo muito injusto, uma sociedade linda que a gente quer botar no lugar, a gente precisa tentar se dar com isso da melhor forma.
Uma das pessoas que me ensinou muito ao longo da vida, foi uma das pessoas que ao longo da vida desmistificaram aquela ideia, porque muita gente diz para um militante, fala assim, você está falando isso porque você é jovem, eu ouço isso há 20 anos. Você está falando isso porque você tem 18 anos, depois você está falando isso porque você tem 18 anos, depois você está falando isso porque você tem 28 anos, depois você está falando isso porque você tem 38 anos. Mas quando você tiver tanto, você vai parar. As pessoas estão até hoje esperando o dia que isso vai acontecer. Mas uma das pessoas que mudou essa compreensão para mim foi o Plínio de Arruda Sampaio, uma pessoa que lutou a vida toda pela reforma agrária e quanto mais juventude acumulada ele tinha, quanto mais anos iam passando, mais radical ele ficava sobre a necessidade de transformar a sociedade. E uma vez a gente estava numa ocupação da ANEEL, na luta contra o leilão de Belo Monte, naquele momento, e que eu estava lá com o Plígio Arruda de Sampaio, outro amigo meu, o Rafael, e aí a gente perdeu aquela batalha ali, a gente fez uma ocupação linda, ficamos resistindo, a polícia expulsou a gente, tinha uma liminar que ia impedir aquele leilão, mas depois obviamente a liminar caiu, o leilão aconteceu. O Greenpeace até derramou três caminhões de esterco lá, a galera subiu em cima, acorrentou em cima e botou um belo monte de merda e tal, e ficaram resistindo lá. Foi uma ocupação linda, uma resistência linda, assim. E no fim das contas, a gente perdeu mesmo assim. Aí eu fui pra casa, tava chateado indo pra casa, e eu falei, Plínio, como é que tu aguenta? Tu já enfrentou mais de uma ditadura na sua vida, você passou por tantos processos. Fiz essa pergunta para ele que tu me fez, como é que você está com isso? Ele falou, ó Thiago, um dos momentos mais difíceis que eu já passei na vida, a resposta era fazer três coisas. Quando me parecia tudo mais difícil, eu me apegava a essas três coisas.
Não se vender, não se deixar destruir e ter pequenas vitórias. Porque nos momentos difíceis, se você consegue manter essas três coisas, você está mantendo o caminho para quando as coisas vão melhorar e a gente vai ter condições de fazer mais então eu acredito que hoje nós vivemos momentos assim e que a gente precisa aproveitar isso ao máximo mesmo eu entendi também ao longo da minha caminhada que é a forma de comunicar fazer muita diferença quando comecei a me lidar eu ficava indignado com tudo que estava acontecendo eu sentia que eu era a pessoa mais burra do mundo enganada a vida inteira e eu sentia assim sobre as pessoas que ainda replicavam aquelas coisas também Então eu falava, pô, é porque tu não tá entendendo, pô. Também já pensei assim, mas não é assim Ou seja, você tá sofrendo uma lavagem cerebral Era terrível pra conversar com as pessoas Eu parecia uma pessoa de determinadas religiões ali Extremamente intolerantes, extremamente positivas. Muitas vezes arrogante E com o tempo eu fui entendendo que não A melhor forma de mostrar pras pessoas era partir do exemplo Estando do lado e acolhendo as pessoas era partir do exemplo, estando do lado e acolhendo as pessoas não todas as dificuldades e as contradições e tentando apontar a beleza da sociedade que a gente queria botar no lugar, sobretudo, e tentando interpretar as durezas da sociedade de uma forma sincera também, mas não impositiva, trazendo muito mais perguntas, uma dinâmica muito mais freiriana do que uma dinâmica impositiva. E aí isso foi me levando para uma forma de comunicação cada vez mais orientada para estimular as pessoas. Se eu entendo, e eu entendo isso, e coletivamente a gente entende na construção, com os militantes que militam a vida toda com a gente, que o desafio que a gente tem no Brasil hoje é de construir uma nova maioria social que esteja disposta a transformar a nossa sociedade, a gente precisa estar cada vez mais aberto ao diálogo com as pessoas, cada vez mais dispostos a apresentar o pouco da sociedade que a gente quer viver então tem que demanda de nós muito menos da capacidade de gritar e odiar e denunciar, isso também é necessário e essa coragem é necessária a gente analisar isso mas demanda muito de nós a capacidade de inspirar as pessoas apontar esses caminhos de convidar ela para vir esse caminho bonito o medo e a raiva nos mobilizam principalmente em situações de urgência, mobilizam muito bem, mas elas não são o que mantém uma pessoa lutando com a gente a vida inteira. O que mantém a pessoa lutando com a gente a vida inteira é muito mais ligado à esperança da construção de uma nova sociedade.
Eu percebi isso ao longo da vida, não era algo que eu entendia desde o início. Então, a forma que eu dou conta de fazer isso é que eu busco, de fato, estar do lado das pessoas, estar tentando compartilhar ao máximo o peso e a dificuldade que é essa vida e toda vez inclusive que eu interpreto que as pessoas não se solidarizam o suficiente eu acredito que tem sim a construção ideológica para que ela não solidarize mas tem também a questão geográfica, que a pessoa por não conhecer aquelas pessoas ela nunca gerou essa conexão assim então o fato de eu já ter passado por tantas aldeias, por tantos acampamentos da reforma agrária, por tantas ocupações urbanas, por tantos países e situações de graves crises humanitárias, faz com que eu conheça famílias desses lugares. Então, quando a pessoa está falando de um bombardeio que aconteceu, eu estou pensando naquela família que eu conheço dali, sabe?
E estou pensando e automaticamente associando que tem todas as outras famílias que merecem o mesmo nível de dignidade. Então, chega um ponto que eu,amente não separo, eu não consigo pensar, isso foi uma coisa muito marcante para mim ao longo desse ano, porque minha filhinha hoje está com 10 meses, e todo santo dia nesses últimos 10 meses eu vi crianças da idade da minha filha sendo destruídas por bombas de Israel. Eu pensava, caraca, essa criança é como a minha filha, e os pais dessas crianças amam os filhos deles tanto quanto eu amo a minha. E para aquela família, aquela criança era tudo, assim como a minha filha é. Então, à medida que você vai conhecendo e convivendo com os povos em luta e com os territórios no mundo, você vai perdendo um pouquinho dessa distância de que, pô, eu não preciso ter ido ao Iêmen para entender que as famílias que estão sofrendo lá estão sofrendo como as famílias daqui. Para saber que a fome lá dói como a fome aqui, para saber que as injustiças sociais lá são tão indignantes quanto as injustiças sociais aqui.
Mas isso é fruto da experiência. A sociedade neoliberal não estimula as pessoas a fazerem isso, ao contrário, ela estimula a pessoa a ser cada vez mais individualista, de você cuidar de si para você estar bem, para você ser bem sucedido nessa sociedade. Então nós temos que quebrar muitos paradigmas. É bom que vocês façam esse trabalho educacional, porque à medida que a pessoa entende que a felicidade dela está conectada com as demais, ela se dispõe a quebrar essa barreira que separa um irmão do outro. Nós estamos na mesma marcha histórica, seja por um caminho ruim, seja por um caminho de libertação.
RENATO COSTA: Aproveitando esse tema da distância e da empatia, e aí pensando também a questão internacional, uma pergunta até que fiz para o Said Tenório, quando ele esteve aqui também, é justamente essa presença do sionismo cristão no Brasil, que tem desgarçado tanto o tecido social brasileiro. Então, como você vê os riscos do sionismo no Brasil? A Conib processando Breno Altman, atentados, falsos atentados à embaixada na Argentina, que levou até o Lawfare contra Cristina Kirchner, né? Então, existe uma filtração sionista na América Latina e mostrando que na verdade o problema tem se mundializado, tem se globalizado e que na verdade, como a gente estava mencionando a charge do Latuff que mostra uma mãe carioca chorando seu filho assassinado, pelo mesmo fuzil que uma mãe palestina chora seu filho também assassinado, não é isso? E assim, para, vamos dizer, trazer, desvelar esses tentáculos do sionismo no Brasil.
É muito importante, Renato, quando a gente está considerando um projeto sionista, a gente lembrar que ele nasce dentro do movimento judaico, mas que a consigna inicial dele nunca foi religiosa. E que de fato ele não é uma religião. O sionismo é uma ideologia colonial e de dominação. E é racista e supremacista na sua essência. Então, eles utilizam do argumento religioso muito mais como uma forma de se apropriar do judaísmo do que verdadeiramente acreditando naquilo. A ponto que, como você falou, a maioria das pessoas hoje no mundo que defendem o sionismo, nesse sentido, o sionismo na necessidade de criação de um Estado étnico, racial, judaico, colonizando a Palestina e submetendo os povos daquela região. Ou a dominação de viver numa sociedade sem direitos ou ao extermínio ou à expulsão. São os três elementos fundamentais. Esse sionismo está presente para muito além da comunidade judaica. Infelizmente cada vez mais pessoas na comunidade judaica rejeitam os sionistas, são judeus anti-sionistas. Mas ele ganhou muita força dentro do fundamentalismo cristão.
E isso por quê? Porque o fundamentalismo cristão também se baseia em uma orientação que é racista, que é supremacista, e que, no fim das contas, ela busca perpetuar relações de desigualdades sociais que são terríveis. Então ele pega setores fundamentalistas religiosos muito mais presentes no segmento evangélico, neopentecostal, utilizam da fé, tanto para o enriquecimento, mas para a perpetuação de um sistema de injustiça que explora, oprime e destrói a natureza, que é ligado, hoje quem tem feito isso pela classe dominante com mais efetividade tem sido a extrema direita, então por isso são aliados da extrema direita, pra eles o sionismo cai como uma luva, porque se eles defendem a mesma sociedade de exploração, de opressão, de destruição da natureza aqui e o sionismo tá fazendo isso com o povo palestino e o sionismo tem relações e habilidades que eles vão adquirindo ao manter um sistema colonial de apartheid, 76 anos de genocídio e limpeza étnica, eles conseguem trocar muita coisa. Então a igreja neopentecostal consegue trocar influência política, inserção social, força social nos territórios, uma capilaridade muito grande, e o sionismo consegue trocar habilidade de inteligência, habilidade de mais técnicas de manipulação, que o fundamentalismo religioso neopentecostal já tem muitos, mas o sionismo é o especialista maior do mundo nisso. Eles conseguem trocar armamentos, eles conseguem trocar métodos de inteligência, de chantagem, de espionagem, de diversas outras coisas.
Então, no fim das contas, é uma cooperação orientada para a dominação, que começa muito mais por interesses comuns e que depois eles vão entendendo que está tudo bem as diferenças, porque o fundamentalismo cristão fala que o povo israelense é o povo escolhido da Terra Prometida, e ignora, no sentido teológico, que o judaísmo não reconhece sequer Jesus Cristo enquanto Messias. Mas para eles não importa isso, porque é um projeto de dominação, na verdade. E para os sionistas, que tratam Jesus como farsante, por mais que eles tenham essa relação com o cristianismo, eles sequestram a fé judaica, tentam sequestrar a fé judaica, então eles se orientam nos seus discursos a partir de uma deturpação teológica também do judaísmo, que inclusive os judeus ortodoxos recusam isso, porque eles inverteram a situação, né? Para os judeus ortodoxos, a volta do Messias vai acontecer quando não houverem judeus ali na Terra Prometida. E os sionistas mudaram isso, inverteram para que o Messias só retornará quando os judeus dominarem aquela região. Então, eles ignoram todas essas coisas, ignoram que na concepção religiosa deles se quer reconhecer Jesus para fazer uma aliança estratégica com o cristianismo, fundamentalismo cristão, num projeto de dominação, porque aí sabem que eles estão entrando nas comunidades dos Estados Unidos, do Brasil, da Europa e em tantos outros lugares, e que ali eles vão ter a força social para implementar o seu projeto de dominação naquela região. Só que aí o sionismo vai dando passos além.
Essa aliança, que não é só sionista, mas ela também é capitalista, também é imperialista, ela também é racista, também é patriarcal, esse programa da extrema-direita no mundo, ele vai tentando ser totalizante. Então não é que os sionistas tenham o plano de que o Brasil seja sionista, mas que a aliança do sionismo com a extrema direita no Brasil tem um plano de dominação no Brasil, que não é que o sionismo dirija o Brasil, mas se eles têm interesses em comum, eles trocam sim seus favores e seus interesses.
Então a gente vê que, de fato, a gente tem empresas de inteligência sionistas instaladas no Brasil, fábricas de armas que produzem armas com tecnologia da Elkid System, por exemplo, a gente tem acordos com prefeituras municipais, com governos estaduais, até com o governo federal, a gente tem acordos comerciais também, com o sionismo, enfim, uma série de outras relações, e a gente tem essa relação orgânica entre os setores da extrema direita de ambos os locais. Então a gente precisa lutar contra ambos, né, pra gente conseguir transformar isso, e de fato o sionismo traz perigos maiores, porque eles são os especialistas em genocídio na nossa sociedade, então, como você falou, a charge do Latoff, pra um militante palestino que veio da Palestina, depois que eu fui lá, esse militante veio aqui ao Brasil.
E ele falou que o que ele mais viu que parecia com a Palestina no mundo inteiro foi a ocupação militar da favela da Maré, no Rio de Janeiro. Ele falou que nunca tinha visto um lugar que parecia tanto com a Palestina como a Maré, só com a ocupação militar. Olha que triste, né? E eu sabia que os fuzis são de lá e que vem com selo de testado em campo contra os povos palestinos e tudo mais. Então, quando a gente vê que existe esse intercâmbio para destruição e para dominação, a gente sabe que são ambos inimigos que nós precisamos derrotar. existe esse intercâmbio para destruição e para dominação, a gente sabe que são ambos os inimigos que nós precisamos derrotar. Não tem como a gente falar que o problema é só a questão palestina e que nós temos que dissociar das lutas do Brasil, porque a gente quer buscar que todo mundo apoie a causa palestina, mas se você não enfrentar a batalha contra as ideologias de dominação daqui, você não está verdadeiramente enfrentando o que está causando o genocídio no povo palestino, que é de fato uma aliança global, capitalista, imperialista e sionista.
Aí, de fato, os riscos são grandes, os mecanismos que eles têm são muitos, o lobby, a força judiciária, o lawfare, como você falou, a pressão para que todos os países e as cidades e os estados reconheçam que falar mal do genocídio e do Estado colonial de Israel seria, na verdade, praticar ódio contra os judeus. Essa pressão está presente em todas as sociedades. A pressão sobre universidades para reprimir o direito de manifestação, a pressão sobre Big Techs para reprimir a circulação de informações, tudo isso está presente e a gente tem que lutar. Mas, no fim das contas, a gente vê que a pressão deles tem aumentado, a capacidade deles de inserção no Brasil tem aumentado com esse processo, na classe dirigente. No povo, essa disputa está em andamento. A gente sabe que muita gente foi cativada para a causa palestina no último período, ao mesmo tempo muita gente nas igrejas neopentecostais foi alimentada com a ideia de que é um povo escolhido numa terra prometida, de vizinhos hostis, violentos árabes e muçulmanos. Então essa batalha está em pleno andamento, a gente viveu um momento de ascenso da luta de massas em solidariedade à Palestina no último ano e agora estamos vivendo um contra-ataque deles na recriminalização, na repressão, na judicialização e a gente está vendo para onde avança, eu acredito que vai avançar favoravelmente para os povos dadas as mudanças geopolíticas que a gente vive e dada a nossa disposição de lutar se a gente estivesse cansado querendo parar e não tivesse novas pessoas chegando e sendo cativadas por essa luta, eu diria que a gente está em uma situação difícil mas eu acredito que a situação é realmente decisiva, crítica mas que nós temos condições de vitória.
EDUARDO CARLI Eu, aliás, fiquei muito impressionado com essa analogia que você fez entre a favela da Maré e a Palestina ocupada militamente. E me lembrei que a gente conversou recentemente com a professora Berenice Bento e ela tem disseminado o conceito de palestinização do mundo, que ela inclusive tira do cineasta palestino Elia Suleiman, que é um pouco esse processo também de várias periferias, várias favelas, vários guetos, mundo afora, serem tratados como Israel trata Gaza. Mas a minha última pergunta seria um pouco mais sobre o tema da violência, numa perspectiva ética, ou seja, eu queria partir primeiro da distinção que se faz entre a violência do opressor e a violência do oprimido, e que elas não deveriam ser jamais confundidas. Isso vem de uma tradição que inclui a pedagogia do oprimido aos panteras negras. E como que a gente aplicaria isso à situação palestina? Recentemente eu assisti um vídeo da escritora indiana, a Undate Roy, recebendo um prêmio, e ela falou assim, há uma pressão para que eu, em algum momento do meu discurso, comece a condenar o Hamas e a resistência armada palestina. Mas ela falou assim, mas eu me recuso a pontificar para os oprimidos o que eles devem fazer. E eu achei isso muito interessante, porque se a gente retornar ao 7 de outubro, e ao genocídio que se inicia a partir de 8 de outubro. E a gente questionar a legitimidade do que a operação, o dilúvio de AlAqsa foi, diante de um histórico de resistência que também em alguns momentos foi desarmada. Estou me referindo por exemplo à grande marcha do retorno de 2018, que a Abby Martin retrata no filme dela. Onde você tem um movimento da sociedade civil em direção à fronteira e você tem um ideário pacifista, porque, por exemplo, o poeta, o comunicador que criou a ideia da Marcha do Retorno, ele se inspira nos pássaros que voam através das secas e das fronteiras sem reconhecer o apartheid. E parece que a intenção deles era romper um pouco esse muro, essa fronteira, e reivindicar pacificamente o seu direito de retorno às terras de onde eles foram expelidos. E, no entanto, a violência do opressor se manifesta de maneira brutal, com mais de 200 mortos, inclusive crianças, paramédicos, jornalistas, pessoas em cadeiras de roda. Então, diante de eventos assim, a minha pergunta basicamente é a seguinte, é legítimo que a população de Gaza, sob esse julgo opressor tão terrível, apoie um movimento armado que vá realizar ações como a do 7 de outubro? E aí o que também me motivou muito a essa reflexão foi um filme recente que eu assisti, chamado Zona de Interesse, do Jonathan Glazer, estrangeiro, onde ele mostra o campo de concentração de Auschwitz na Polônia e ao lado, literalmente vizinho, na verdade a mansão onde os alemães que comandam esse campo moram com suas piscinas, seus drinks, seus luxos e tudo mais. E aí muitas vezes o paralelo que se pode fazer nesse caso, talvez, seja que em 7 de outubro de 2023 houve essa insurreição armada do Hamas e de outros grupos da Jihad Islâmica e tem se utilizado isso para dizer que olha que atrocidades, mataram tantas pessoas, entraram num festival de música, as pessoas estavam dançando e foram massacradas, e eu falo uma coisa, espera aí, como a Abby Martin também fala, espera aí, mas não tem um problema de você fazer uma rave ao lado de um campo de concentração e extermínio? Não tem o problema de você querer ter uma vida cheia de fun, diversão, em uma terra que você usurpou através da limpeza ética? Então, será que não há uma legitimidade, tanto do ponto de vista ético, político, para o uso da violência do opressor em certas situações? Como que você se coloca?
Obrigado Edu por trazer essa reflexão que eu acredito que é fundamental. O mundo inteiro se perguntou isso, né? Até que ponto se justifica a violência como um caminho para buscar justiça social. Eu sempre tento fazer um paralelo. Há muitos anos eu nunca acertei nesse paralelo, ele nunca está redondo para mim, mas é um paralelo que eu gosto de traçar, de que as pessoas quando assistem Star Wars, elas torcem pelos rebeldes.
Quando elas assistem Coração Valente, elas torcem pelos escoceses. Quando elas assistem Avatar, elas torcem por aquele povo originário. Quando elas assistem, sei lá, História de Amor e Fúria, elas torcem pelos indígenas brasileiros, torcem pelo movimento comunista contra a ditadura militar. Agora, quando é no cotidiano, meu Deus, aí tem tudo, mil justificativas pra você não apoiar os movimentos de resistência, inclusive a armada, do cotidiano da existência no mundo hoje.
Aí vai falar da luta pela terra? Ah não, aí é baderneiro, aí é invasor de terra. Ah, vai falar da luta, por exemplo, nos territórios de ocupações urbanas? Ah, não, mas ele está tentando tomar o que é dos outros. Aí vai falar do movimento anti-imperialista, de povos lutando contra imperialistas?
Ah, não, eles são terroristas. Aí não dá. Então, é muito curioso que quando a gente está num ambiente do cinema, e você, por ter essa vivência, sabe disso muito melhor do que eu, as pessoas conseguem entrar ali no microcosmos naquele momento e elas têm mais capacidade de julgar o que é certo e o que não é certo do que na nossa sociedade confusa que ela é hoje. Tão complexa, né? Então as pessoas muito facilmente entendem o que é certo e o que é errado ao assistir um filme baseado nos seus valores.
Ela não acha certo assassinar crianças, ela não acha certo oprimir povos, escravizar povos, colonizar povos. Agora na sociedade que a gente vive como um todo, na totalidade, na complexidade do mundo, as pessoas encontram mil justificativas. Ah, mas é assim, mas não dá, mas o que é aquele país terrorista e tal, tal, tal. Sendo que as mesmas verdades que as pessoas entendem em duas horas de um filme, elas deveriam entender que é a vida comum. Ocupar países não é aceitável. Escravizar povos não é aceitável. Colonizar países não é aceitável.
Explorar, aí dá pra ir além. Explorar as pessoas, a força de trabalho das pessoas não deveria ser aceitável. Oprimir baseado em gênero, em raça, em sexualidade, em nacionalidade, de todas as demais formas, não deveria ser aceitável. Oprimir baseado em gênero, em raça, em sexualidade, nacionalidade, todas as demais formas, não deveria ser aceitável. Destruir a natureza, obviamente, não deveria ser aceitável.
Agora as pessoas, por um processo de construção ideológica, vão normalizando isso, entendendo que é o mundo que a gente vive. O mundo como a gente vive é assim, e a gente não pode mudar isso, se você não quer sofrer, para de se responsabilizar por coisas que não estão sob seu controle. Então, esse debate da violência revolucionária é muito importante de se fazer, porque quando a pessoa está num cinema ela entende e quando ela está falando de acontecimentos passados na história humana, ela também entende. Ela entende a Revolução Francesa para acabar com o absolutismo na França. Ela entende o Quilombo dos Palmares para lutar contra a escravização negra e o sequestro do povo negro sequestrado de África até aqui. Ela entende as revoltas e a tentativa da resistência indígena contra o genocídio. Muitas delas admiram Canudos, admiram a Balaiada, admiram a Confederação do Equador, admiram a Conjuração Baiana, admiram o Contestado e tantas outras revoltas. Muitas delas admiram a Revolução, chamada Revolução Americana nos Estados Unidos, também foi uma revolta anticolonial.
Porque é mais fácil entender isso como algo do passado, como se hoje esses conflitos não existissem mais e hoje no futuro essas coisas não são mais aceitáveis. Então entende a luta contra o imperialismo ali, contra o capitalismo na época da Guerra Fria, mas hoje não dá, hoje não dá para falar de Cuba não, porque Cuba teve muitas contradições, é isso que as pessoas dizem, na verdade essas lutas não tão vivas como eram antes e os povos ainda seguem explorados, oprimidos e tendo seus biomas destruídos pelo mesmo sistema imperialista, capitalista que existia antes. Hoje, dependendo da época, já são senhores diferentes dirigindo esse mesmo sistema, mas o sistema ainda é o mesmo desde a criação do capitalismo. Então, quando a gente coloca isso sob essa perspectiva de que as lutas de libertação existiam e existem ainda hoje, e que elas, por mais que os povos tentem, elas são muito rapidamente impelidas a uma necessidade de sobrevivência e de autodefesa, as pessoas compreendem que é necessário sim você se defender, e que se você não quer só ficar se defendendo, mas você quer conquistar uma sociedade nova, você precisa avançar, inclusive.
Então, a violência revolucionária, ela sempre foi algo necessário para a história das revoluções. Eu não estou falando de violência no sentido de o que as pessoas falam muito em relação à Palestina. Quem fica gritando Palestina livre do Rio ao Mar quer jogar judeus no mar. Longe disso. Eu não conheço uma única organização palestina que fale isso, inclusive. As organizações que falam que a possibilidade da construção de dois estados, da solução de dois estados está esgotada pela colonização na Cisjordânia e por tudo mais que o Estado de Apartheid produz, que fala da construção de um Estado único, binacional, laico, democrático, essas organizações falam sobre os povos poderem viver onde estão, e que não precisa expulsar ninguém de lugar nenhum, na verdade, e garantir o direito de retorno de todos os povos para aquela região, de todos os palestinos que foram expulsos e de todas as outras pessoas de origem judaica ou cristã que migraram dali porque aquele ali virou um estado colonial de apartheid e hostil à vida. Então, toda vez que as pessoas falam disso, está falando justamente de garantir o direito para todos os povos. Então, a violência revolucionária no sentido da resistência palestina, ela é, primeiro, uma necessidade de resistência, porque é exterminado, e depois ela busca alcançar uma sociedade de direito para todos, sociedade de plenas liberdades para todas as pessoas que estão ali.
Então, aquela citação, aquela frase que você falou, da violência não confundir a resistência do oprimido com a violência do opressor, ela é muito real nesse sentido, de que o povo palestino vivia, no 7 de outubro de 2023, o povo palestino já vivia 75 anos de genocídio, limpeza étnica, que se estruturou no estado de colonização de Apartheid, e que naquele ano mesmo, é outubro, mas de janeiro a setembro, Israel já tinha assassinado, nasceu Jordânia em Gaza, mais de 400 pessoas. E como você falou, nas marchas do retorno que aconteciam às sextas-feiras a partir de 2018, já tinha sido assassinado mais de 200. Em outras ações não violentas que o mundo nunca viu, nunca ouviu falar sobre as greves de fome que o povo palestino faz, de palestinos que estão presos há 35 anos nas prisões e nos porões de Israel. O mundo nunca ouviu falar sobre as várias ações que as pessoas tentam fazer, por exemplo, até de cultivo agroecológico nos campos de refugiados que são impedidos pelos sionistas. Nunca ouviram falar sobre a resistência que é você cultivar azeitonas milenares nas suas casas palestinas sob ataque dos colonos o tempo todo.
O povo palestino talvez seja um dos povos que mais tentou táticas não violentas de resistência, o próprio boicote, desinvestimento e sanção é uma forma não violenta de resistência. O problema é que essas formas têm muita dificuldade de lidar com o sistema colonial, porque o sistema colonial tem uma vocação para o genocídio. E aí você precisa de fato se defender. Então eu trato todas essas ações, seja a operação Tempestade de Al-Aqsa e todas as demais como ações essencialmente de autodefesa, de um povo que é colocado sob uma situação tal de estrangulamento da vida, que precisa lutar pela sua libertação. E que quando faz, obviamente, a força dominante, opressora, ela vai falar como se aquilo fosse o começo da violência.
Não foi só na Palestina, mas também diziam isso sobre o povo vietnamita resistindo à invasão estadunidense, também falavam isso sobre o povo argelino resistindo à invasão francesa, Também falavam isso sobre o povo cubano tentando fazer sua revolução. Falavam isso sobre o quilômetro dos Palmares, que eram assassinos, que eram violentos. Na verdade, eram povos que estavam sobrevivendo e resistindo à escravização. Então, essa desumanização sempre vai acontecer. O quão óbvia ela acontece em relação à Palestina é o fato de que dizem que o Estado sionista só faz isso, só mantém Gaza há 17 anos sob cerco total, por terra, por ar e por mar, por conta do Hamas.
Mas peraí, o Hamas foi fundado em 1987, mas eles praticam isso desde 1947, de genocídio e limpeza étnica. Então, e antes do Hamas? Ah, antes do Hamas era a Organização pela Libertação da Palestina, com Yasser Arafat, terrorista, na mesma época que chamavam Nelson Mandela de terrorista, chamavam Yasser Arafat de terrorista. E ele que era um terrorista e tal. Mas, pera aí, a Organização pela Libertação da Palestina foi fundada em 1964, mas antes disso já existia genocídio e limpeza étnica contra o povo palestino. E aí, qual que é a desculpa agora? Ah, não, mas os palestinos em geral são violentos e não aceitam, né? Então, eles sempre vão buscar uma justificativa pra manter o seu projeto de dominação. E, infelizmente, o imperialismo encontrou essa forma de dizer que os violentos são os outros e nós só queremos direitos humanos e democracia, e eles usam isso e batem nessa tecla sempre.
Então, a gente vê torcedores sionistas que estão pregando o genocídio e destruindo cidades, em Amsterdã, por exemplo, que causam caos numa cidade, agridem taxistas, destroem comércios, arrancam bandeiras palestinas, gritam gritos de genocídio, incentivando o estupro de prisioneiros palestinos pelo exército, rindo que não tem escolas em Gaza porque não tem crianças mais em Gaza, e depois quando o povo resiste a isso e tenta defender aquela comunidade daquilo eles que são os violentos. “Nossa, olha o tamanho do ataque, olha o antissemitismo crescendo no mundo.” Então eles se especializaram nisso, criar situações de estrangulamento que obrigam os povos a responder, e quando os povos respondem eles tratam como se aquilo ali fosse o evento originário da violência. E não uma resposta óbvia a um estado insustentável.
Antes do 7 de outubro já tinham sido assassinados 400 pessoas, antes do 7 de outubro 60% da população de Gaza já vivia sob insegurança alimentar, antes do 7 de outubro 97% da água de Gaza já era contaminada, 85% da população estava desempregada e a maioria da população já era de uma faixa entre 17 e 18 anos porque são pessoas que são assassinadas frequentemente num lugar que não era viável para a vida, uma das maiores concentrações e densidades demográficas da história da humanidade ali numa área de 365 km do tamanho do plano piloto de Brasília, onde estava colocado ali 2,3 milhões de pessoas.
Então você criar naquela região o equivalente a um gueto de Varsóvia, você está criando naquela região uma possibilidade de resistência equivalente a um gueto de Varsóvia, você está criando naquela região uma possibilidade de resistência equivalente a um gueto de Varsóvia. Que bom que judeus resistiram ao nazismo no gueto de Varsóvia com toda a coragem que tiveram utilizando seu direito de resistência, inclusive o direito internacional garante aos povos o direito de resistir à colonização, inclusive através das armas. Que bom que os povos resistiram no Quilombo dos Palmares, que bom que resistiram no gueto de Varsóvia e que bom que o povo palestino está fazendo essa resistência heróica, e que o povo libanês faz essa resistência heróica, e o povo yemenita faz essa resistência heróica.
A gente pode ter divergências dos programas políticos das organizações. Eu tenho várias. Na verdade, eu sou uma pessoa ecossocialista pelo bem viver, portanto comunista. Então, eu acredito no Estado laico, de fato. Acredito que esse é um caminho melhor para se construir a política. Agora, eu entendo que todas as organizações que estão na resistência armada palestina, elas estão cumprindo um papel fundamental. Nesse momento, são todas nossas aliadas, mas elas são aliadas do fim da violência. Porque é só a partir do momento que você desmantela o Estado colonial que você está criando o caminho para manter aquela violência naquele país. Então, de fato, a construção ideológica dos grandes veículos de comunicação, eles tentam dizer que as organizações que geram a violência precisam ser exterminadas e fomentam um ciclo ainda maior de agressões e de violência, que afetam muito mais a população civil, mas elas ignoram o fato de que aquela insurreição e aquela resistência é o único caminho de, enfim, acabar com a violência naquela região.
Antes da sociedade ocidental moderna perdoar Nelson Mandela, Nelson Mandela também era tratado como terrorista e passou 27 anos preso. E justamente porque ele estava tentando acabar com um dos regimes mais odiosos daquele tempo, racista e supremacista, como era o Apartheid na África do Sul. E hoje o sionismo é racista e supremacista contra o povo palestino. Então precisa ser destruído, precisa ser desmantelado, assim como o nazismo, assim como o fascismo. Todas as ideologias odiosas do mundo precisam ser enfrentadas pelos povos.
Infelizmente, dado o grau de violência, esse enfrentamento, por melhores sejam nossas intenções de não violência, eles muito rapidamente vão encontrar táticas esgotadas, por não conseguir alcançar o limite mínimo de autodefesa daquele povo. E vão ter que se insurgir de forma armada. Eu construo muitas ações não violentas, muitas mesmo. Eu sou uma pessoa muito adepta a táticas de resistência não violenta pela potência que elas têm, que eu sei que têm. Mas depende da situação. Eu não entendo a não violência como um valor, eu entendo como uma tática.
Uma tática que em determinados momentos vai ser mais útil você resistir de forma não violenta para tornar mais escancarada ainda a violência daquela força opressora contra você, mas depende de você ter olhos e ouvidos que vão ser alcançados com aquela mensagem e depende de você ter a capacidade junto com aquele povo de preservar a vida das pessoas. Onde é de fato um extermínio e um genocídio, as táticas não violentas perdem espaço muito rápido para a necessidade de se proteger e de garantir a permanência, a perpetuação da vida ali.
Todas as vezes que o povo palestino tentou fazer táticas não-violentes, eles foram assassinados aos montes. A Marcha do Retorno é esse exemplo. Pessoas caminhando ao longo de uma cerca, sendo executadas por snipers, por drones experimentais, por bombas de gás lacrimogênico com postos químicos muito mais acentuados do que a gente vê em outros países, e os sionistas comemorando aquelas execuções como se fossem troféus de guerra de um videogame.
Então, é o efeito que a gente viu. Uma ação heroica, mas que não atingiu o efeito que precisava. O que atingiu o efeito que precisava para demonstrar para o Estado sionista que aquela situação era inaceitável foi justamente a insurreição armada, que foi, é importante que se diga, que foi majoritariamente contra estruturas militares e colônias estabelecidas naquela região e que tinha orientação de tomar alvos militares e que podem sim ter acontecido uma série de outras questões, eu não nego e não gosto do sofrimento civil em nenhuma hipótese. Então, de fato, eu acredito que qualquer sofrimento civil é um erro tático de qualquer organização política, porque não se deve fazer isso sob nenhuma hipótese. Mas que a maior parte das pessoas eram militares, isso foi comprovado depois, à medida que Israel foi soltando os nomes das pessoas, foram entendendo que das 600 pessoas, das 600 únicas pessoas que eles soltando os nomes das pessoas, por entendendo que das 600 pessoas, das 600 únicas pessoas que eles soltaram os nomes, eram 95% militares.
E que muitas das pessoas que eles diziam que tinham sido assassinadas dos 40 bebês decapitados, nunca existiram. Que a criança colocada dentro de um forno, nunca existiu. Que o bebê arrancado do ventre de uma mãe, nunca existiu. Que os estupros em massa nunca existiram. Então a gente foi vendo que eles usam essa propaganda da violência do povo oprimido como forma de aumentar mais ainda a sua violência. Então, a forma que a gente tem de não estar sujeito a isso é a gente reconhecer no direito de origem dos povos a luta pela libertação. E, inclusive, isso, o direito internacional, liberal, burguês, reconhece também. A ONU, a Carta da ONU, reconhece o direito dos povos a se insurgir, inclusive, de forma armada contra o colonialismo.
Então, é isso que o povo palestino faz, é isso que em várias partes do mundo os povos estão fazendo contra o imperialismo, é isso que o povo do Níger, de Burkina Faso, do Mali está fazendo nesse momento, e que bom que estão fazendo. Então eu não trato essas resistências como menos importantes por elas serem armadas, eu só trato que é um momento diferente de acirramento da luta de classes e que nós devemos torcer para que os povos sejam livres, porque é a única forma daquela região não ver mais violência. Só a partir da liberdade e da emancipação. Colonialismo vai ser sempre uma forma de violência em si.
RENATO – Eu queria agradecer, então, para encerrar. Muito obrigado, Tiago. Que bom que você veio à Goiânia. A gente vai encerrar essa entrevista aqui no sábado, dia 9 de novembro de 2024. Vamos nos encaminhar agora à Praça Estado da Palestina, que fica anexo à Praça Tamandaré, aqui em Goiânia, que na guerra dos seis dias foi criado em solidariedade ao povo palestino, uma praça com o nome do Estado da Palestina, que em breve será construído do rio ao mar, expulsando essa entidade sionista, racista, colonialista, de paz, de fraternidade, respeitando todos os povos e credos, que possa ter soberania e, como diria o Fidel, a pátria é a humanidade. Então, nós todos agora compartilhamos o desejo da criação da pátria, que já existe, mas do Estado da Palestina, que garanta os direitos dessa população, que tem 4 mil anos de história. Então, agradeço muito pela presença, pelas palavras, pela aula que você nos deu. Muito obrigado.
EDUARDO – Eu também quero prestar um agradecimento especial aqui para o Tiago, acho que foram duas horas de muito aprendizado, né? Todas as respostas excelentemente formuladas e eu acho que o Comitê de Solidariedade ao Povo Palestino aqui de Goiânia também tem colaborado muito assim para que figuras relevantes estejam aqui mobilizando o debate público. Então você é uma grande inspiração para nós e muito massa te ter aqui. E aí para terminar fala para a galera aí quais são as suas redes sociais para quem quiser te ouvir mais. Tem uma faceta de ciber guerreiro, você está na luta para criar comunicação popular relevante, mas também um confronto com vários processos de censura, mas eu acho que você faz um dos trabalhos mais importantes da cybercultura brasileira nesse aspecto da militância antiimperialista, libertadora. Então quem quiser ouvir mais do Thiago Ávila, você pode fazer os convites aí para que a galera te siga.
Valeu, Edu. Gente, se vocês quiserem acompanhar esse trabalho de busca por comunicação livre, uma comunicação emancipadora, apesar das ferramentas das big techs promoverem um grande bloqueio e dos grandes veículos de comunicação promoverem um grande boicote às nossas ideias, a gente segue produzindo esse conteúdo nas mais diversas ferramentas. Então, eu não sei até quando essas redes sociais vão estar disponíveis para as nossas ideias circularem e já circulam com muita restrição, mas eu tenho o Instagram, que é Thiago Ávila Brasil, tem o canal do YouTube também, tem o TikTok, depois de muitas versões, depois de muitas exclusões nessa ferramenta também. As ferramentas de X, de buscar, todas elas existem também, mas não são as que eu mais dedico tempo e atenção. É um ambiente ainda mais restrito para desenvolver ideias e argumentos.
Às vezes é uma prática um pouco tóxica que eu não curto muito também. Então, como eu vou mais pela construção, pela positiva, eu tento ir no lugar onde eu consiga botar um vídeo que não seja um vídeo tão curto assim e que consiga ter interação com as pessoas. É isso que eu tenho tentado buscar. Então, sobretudo, o meu trabalho tem acontecido no Instagram e no YouTube agora. E eu agradeço muito por vocês estarem acompanhando. No Instagram, se vocês forem seguir, vocês vão ver que vocês vão ter dificuldade para seguir a página, vão ter dificuldade para comentar, vão ter dificuldade para curtir, vão ter dificuldade para compartilhar, mas acredito que vocês vão gostar do conteúdo, acredito que vale a pena mesmo assim. Então, sugiro que vocês façam, se vocês puderem, eu vou agradecer muito essa força que a gente vai tentando produzir.
Eu sempre penso assim, cada pessoa, todos nós temos uma quantidade limitada de energia que a gente tem para dedicar ao nosso dia, nossa energia militante. Toda vez que eu escolho dedicar uma parcela da minha energia militante no meu dia, a produção de conteúdo para a internet, é porque eu acredito que dali vão trazer chamadas para luta, reflexão e mobilizar pessoas que vão fazer esse esforço valer mais a pena do que determinado trabalho. Muitas vezes que é um determinado trabalho territorial, de base, às vezes é um determinado trabalho de articulação política, outro trabalho de formação, enfim. É uma aposta de que essa energia aí não vai ser em vão. Então essa energia é feita pensando que a pessoa que vai ver vai falar pô, eu senti esse chamado, eu quero fazer essa parada aí também, quero ser útil para essa mesma causa, porque eu fui assim, cara.
Quando eu tinha 18 anos lá eu falava, eu falava só quero ajudar por favor me ensina o que eu posso fazer e era muito humilde inclusive para aprender isso daí que eu pensava não sei nada de nada e quero aprender o que eu puder assim sabe inclusive naquela época ninguém tinha o menor interesse em ouvir eu falando porque eu não tinha, eu não estava aprendendo gente, eu não sabia nem expressar direito né então depois as pessoas falam inclusive falam pra mim o Thiago tu se expressa bem, tu fala bem e tal. Aí eu lembro daquele ditado, né, de que o diabo sabe mais por ser velho do que por ser diabo, né? Porque eu falo disso há 20 anos, gente. Se eu não falasse bem, não soubesse falar o que eu tô dizendo ao longo de 20 anos, se eu fosse saltador de saltos ornamentais, seria bom que eu faça depois de 20 anos, mas se eu fosse um músico como vocês são, 20 anos, pô, a pessoa tem condições de se tornar um bom músico. Eu dedico os últimos 20 anos da minha vida a fazer isso, a colaborar pra construir uma revolução. Então, é meio evidente que eu vou saber determinadas pautas, assim, vou saber comunicar elas, mas o mais importante não é a pessoa ter essa habilidade de comunicar, o importante é ela se dedicar verdadeiramente, assim. Tem gente que sabe muito formatadinho, sabe ler um programa político e sabe defender ele, assim. Mas aquilo ali ou não vai levar no horizonte de emancipação, ou às vezes aquilo ali não é uma vontade genuína dela, faz com objetivo de benefício pessoal, essas coisas. Então, é mais importante as pessoas buscarem verdadeiramente a construção de uma revolução, tanto nos seus corações, como a partir da sua prática política cotidiana concreta.
É isso que eu tento fazer na comunicação, eu não sou um influencer, as pessoas me chamam assim, eu entendo, mas eu não me coloco assim, eu sou um militante revolucionário que está ali naquela trincheira a mais, como tantas outras, e que, sinceramente, a maior parte do meu dia eu não dedico a isso, mas quando eu dedico, eu estou botando muita fé de que aquilo ali vai ter o resultado de acumular força para as nossas batalhas. Essas são coletivas, elas não são pessoalizadas como rede social é e tal, elas são muito melhores do que o ambiente da rede social, na verdade.
Então é um chamado para as pessoas de compartilhar aquela mensagem para ir mais longe, mas principalmente bora para essa batalha da nossa vida, gente, que é aí que a gente transforma a realidade. Valeu, gente, valeu pelo convite, adorei estar aqui, adorei conhecer a Casa de Vidro. Recomendo que vocês que estão assistindo aqui, em algum momento conheçam a Casa de Vida em Goiânia, que é um espaço lindo, uma proposta linda e semeando um pouquinho da sociedade que a gente acredita. Valeu, gente.
Publicado em: 14/11/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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